Cláudia Costin, Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, escreveu um breve texto em sua coluna na Folha de S. Paulo em 17 de maio de 2019, intitulado “Professores do Brasil”.
Inicialmente, ela faz menção a um “estudo recente”, mas sem indicar o link. Na verdade, não se trata de um estudo recente, mas de uma edição atualizada e revisada de um estudo publicado originalmente em 2009.
Costin aponta “boas notícias” da nova edição do estudo: “uma maior variedade entre os mestres e um número maior de inscritos em cursos de formação inicial”. Mas aponta também para o desafio de que esse aumento nas inscrições não refletiria maior prestígio na carreira, pois apenas 2,9% dos jovens brasileiros com idade de 15 anos desejam ser professores da educação básica. Além de que, “ao que tudo indica”, o aumento no número de inscritos seria devido à menor competitividade no acesso e ao desejo de ter um diploma de ensino superior.
A partir daí, Costin faz em sua matéria críticas à formação de professores a distância, que reproduzimos na íntegra para, em seguida, comentar:
Na publicação, ressalta-se ainda que 46% das matrículas se deram na modalidade de ensino a distância, o que é claramente inadequado para uma profissão que exige intensa conexão com a prática.
Um professor precisa cada vez mais saber atuar em atividades que demandam constantes interações com alunos, por meio de metodologias ativas e ativação cognitiva, num processo que, de acordo com a OCDE, requer pensamento de ordem mais elevada e resolução colaborativa de problemas.
Ora, as competências para esse trabalho dificilmente podem ser desenvolvidas em um curso a distância. Seria o mesmo que esperar que um médico aprendesse a operar pacientes em cursos puramente teóricos e online.
Muitos dos cursos oferecidos o são por instituições privadas que não produzem pesquisas e contam com currículos dissociados da realidade da escola.
Na verdade, o estudo (GATTI et al, 2019) utiliza a expressão “educação a distância” 91 vezes e a sigla EaD 17 vezes, sendo que a expressão “ensino a distância” aparece apenas 6 vezes no documento. A legislação brasileira tampouco privilegia a expressão. A Portaria 1.428 (BRASIL, MEC, 2018), por exemplo, fala de “modalidade a distância”, enquanto as Portarias 11 (BRASIL, MEC, 2017) e 275 (BRASIL, Capes, 2019) e o Decreto 9.057 (Brasil, Casa Civil, 2017) utilizam a expressão “educação a distância”. Mas além de “ensino a distância” não ter amparo na nossa legislação (nem no documento que Costin comenta), do ponto de vista pedagógico a expressão nos remete à educação bancária que Paulo Freire (1982) tão bem caracterizou, à qual ele opunha uma educação humanista e problematizadora. Chamar algo de “ensino a distância”, além de tecnicamente incorreto, já avalia negativamente, de antemão, a modalidade.
Mas continuemos pressupondo que Costin esteja falando de educação a distância (EaD). Para ela, a formação por EaD “é claramente inadequada para uma profissão que exige intensa conexão com a prática” e as competências para o trabalho de que o professor precisa “dificilmente podem ser desenvolvidas em um curso a distância”. Cabe perguntar, então, se os cursos da FGV online, instituição à qual a articulista está vinculada, não são direcionados a formar um profissional que precisa de intensa conexão com a prática? Ou não são capazes de desenvolver competências para o trabalho nesses profissionais?
Em primeiro lugar, importante lembrar que um curso a distância, no Brasil, nunca é 100% a distância. Ou seja, parte da sua carga horária é oferecida a distância, mas parte é oferecida presencialmente, em polos de apoio presencial e ambientes profissionais:
Art. 21 – Para fins desta Portaria, são considerados ambientes profissionais: empresas públicas ou privadas, indústrias, estabelecimentos comerciais ou de serviços, agências públicas e organismos governamentais, destinados a integrarem os processos formativos de cursos superiores a distância, como a realização de atividades presenciais ou estágios supervisionados, com justificada relevância descrita no PPC. (BRASIL, 2017a).
A educação a distância no Brasil se construiu baseada na ideia de atividades presenciais realizadas em polos. Assim, a argumentação de Costin já cairia por terra, porque um curso de EaD não prescinde necessariamente da formação prática, muito menos de interações. Aliás, há um número inteiro da TECCOGS – Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, nº 9, Jan-Jun 2014, do Programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) / PUC-SP, para discutir esse fascinante tema das interações na educação a distância.
Um ambiente profissional pode, por exemplo, ser uma escola. É difícil compreender que um aluno de Pedagogia precise estar o tempo todo sentado em uma cadeira de uma sala de aula para discutir teorias de aprendizagem, legislação, história da educação etc. e que não possa realizar atividades práticas em polos de apoio presencial e em ambientes profissionais. E que, se não fizer isso, não será um bom professor. É difícil também aceitar que tudo o que vem realizando a UAB — Universidade Aberta do Brasil, que nasceu justamente focada nesse profissional, não tenha utilidade para o país: “A meta prioritária do Sistema UAB é contribuir para a Política Nacional de Formação de Professores do Ministério da Educação, por isso, as ofertas de vagas são prioritariamente voltadas para a formação inicial de professores da educação básica.”
Por outro lado, venho estudando com muito interesse e entusiasmo o uso de metodologias ativas em cursos a distância, e o consequente desenvolvimento dessas habilidades nos alunos a distância. Há uma bibliografia linda sobre o tema, da qual seleciono apenas alguns exemplos a seguir:
ANDERSON, Terry; ROURKE, Liam. Using web-based, group communication systems to support case study learning at a distance. The International Review of Research in Open and Distributed Learning, v. 3, n. 2, 2002.
CHEN, Charlie C.; SHANG, Rong-An; HARRIS, Albert. The efficacy of case method teaching in an online asynchronous learning environment. International Journal of Distance Education Technologies, v. 4, n. 2, p. 72–86, 2006.
CHOI, Ikseon; LEE, Sang Joon; KANG, Jeongwan. Implementing a case‐based e‐learning environment in a lecture‐oriented anaesthesiology class: do learning styles matter in complex problem solving over time? British Journal of Educational Technology, v. 40, n. 5, p. 933–947, 2009.
EUFRASIO JUNIOR, Nelson Luis. Do design instrucional ao design thinking: desafios e possibilidades para a inovação na educação corporativa na modalidade online: o caso SENACRS. 2015. Dissertação (Mestrado em Educação)—Unisinos, 2015.
FRANSSON, Martha; CHASE, Robin. Effects on student achievement of converting a case method MBA course to distance education: an exploratory study. In: ACADEMY OF MARKETING SCIENCE (AMS) ANNUAL CONFERENCE, 1999, Coral Gables, FL. NOBLE, Charles H. (Ed.). Proceedings of the… Springer International Publishing, 2015. p. 163–168.
GARTLAND, Marsha; FIELD, Teresa. Case method learning: online exploration and collaboration for multicultural education. Multicultural perspectives, v. 6, n. 1, p. 30–35, 2004.
KASLOFF, Peggy. Active online learning: implementing the case study/personal portfolio method. In: KIRSTEIN, Kurt D.; HINRICHS, Judy M.; OLSWANG, Steven G. (Ed.). Authentic instruction and online delivery: proven practices in higher education. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2011. p. 283–304.
KRAUSE, Markus et al. A playful game changer: fostering student retention in online education with social gamification. In: ACM CONFERENCE ON LEARNING@ SCALE, 2., 2015, Vancouver. Proceedings… ACM, 2015. p. 95–102.
SCHNEIDER, M. D. ; ZANETTE, E. N. ; CECHELLA, N. C. T. P. Relato de experiência: metodologia de aprendizagem baseada em projeto, em curso de graduação a distância. Criar Educação, 2016. Edição Especial II Congresso Ibero-Americano de Humanidades, Ciências e Educação.
WEBB, Harold W.; GILL, Grandon; POE, Gary. Teaching with the case method online: pure versus hybrid approaches. Decision Sciences Journal of Innovative Education, v. 3, n. 2, p. 223–250, 2005.
Ou seja, Cláudia Costin: há incontáveis experiências que mostram o sucesso da utilização de metodologias ativas na educação a distância. Sala de aula invertida, peer instruction, método do caso, aprendizagem baseada em problemas, aprendizagem baseada em projetos, aprendizagem baseada em games, gamificação, design thinking, aprendizagem colaborativa e em grupo podem sim ser utilizadas em EaD, e para desenvolver competências e habilidades nos alunos.
Yang, Newby e Bill (2005), por exemplo, demonstraram que o uso da maiêutica socrática aprimorou as habilidades de pensamento crítico em alunos em fóruns de discussão assíncronos em cursos superiores a distância, o que, para Costin, parece difícil. E Johnson (2010) demonstrou que a educação a distância contribuiu para o desenvolvimento de habilidades de literacia da informação em alunos do ensino superior. Os resultados da literatura nessa direção são muitos.
Uma já clássica meta-análise, encomendada pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos, comparou estudos empíricos sobre aprendizagem presencial e online (MEANS et al, 2010). Os estudos selecionados mediam os resultados de aprendizagem dos estudantes, utilizaram um design de pesquisa rigoroso e forneceram informações adequadas para realizar cálculos dos resultados. A meta-análise concluiu que, em média, os alunos que estudaram online tiveram um desempenho modestamente melhor do que aqueles que estudaram presencialmente. Mas interessante notar que os melhores resultados ocorreram justamente nas experiências que mesclavam elementos online e presenciais, o que chamamos hoje de blended learning, que no final caracteriza a educação a distância no Brasil. Blended learning é, aliás, o tema do CIAED — Congresso Internacional ABED de Educação a Distância: “Abordagens Híbridas no Ensino-Aprendizagem na EaD”, ao qual Costin já está então convidada, pois assim, certamente, terá a oportunidade de ampliar sua visão sobre a modalidade.
Em sua argumentação contra a EaD, Costin afirma ainda que: “Muitos dos cursos oferecidos o são por instituições privadas que não produzem pesquisas e contam com currículos dissociados da realidade da escola.” Ora, em primeiro lugar, o são por instituições privadas porque a oferta de cursos de formação por instituições de ensino públicas não tem atendido à demanda. Então deveríamos, como país, formar menos, bem menos professores, restringindo sua formação à iniciativa pública? Há de antemão, no seu discurso, um preconceito em relação às instituições de ensino superior privadas, uma das quais, aliás, ela está vinculada? Seus currículos estariam dissociados da realidade da escola — mas os das instituições públicas não estariam?
A EaD é uma modalidade de educação consolidada no ensino superior do nosso país, do ponto de vista legal e prático, e não se justifica desqualificar todo o trabalho feito por legisladores, instituições de ensino superior, professores, avaliadores do MEC e outros atores, mesmo porque muitos cursos de EaD de Pedagogia e/ou formação de professores foram avaliados com notas máximas pelo MEC. Alunos já formados em cursos de Pedagogia e áreas afins, oferecidos a distância inclusive por instituições privadas, estão adequadamente posicionados em escolas e colaborando com o país, o que comprova que a EaD tem valiosas contribuições a dar à formação de professores, especialmente àqueles que seriam incapazes de abandonar as cidades do interior onde residem para estudar. As notas do Enade de alunos formados em curso de EaD, muitas vezes superiores às de alunos formados em cursos presenciais, atestam também a validade social desses cursos e sua capacidade de desenvolver habilidades e competências, mesmo para profissionais que tenham que interagir com seus alunos.
A educação a distância não é a solução para os problemas da educação brasileira. Mas breves matérias em colunas em jornais de tamanho impacto e importância, como a Folha de S. Paulo, que tratem a modalidade sem fundamentação adequada e com afirmações levianas, certamente não contribuirão para o desenvolvimento da nossa educação.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Portaria nº 1.428, de 28 de dezembro de 2018. Dispõe sobre a oferta, por Instituições de Educação Superior – IES, de disciplinas na modalidade a distância em cursos de graduação presencial.
BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Portaria Normativa nº 11, de 20 de junho de 2017a. Estabelece normas para o credenciamento de instituições e a oferta de cursos superiores a distância, em conformidade com o Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017.
BRASIL. Ministério da Educação/Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Portaria nº 275, de 18 de dezembro de 2018. Dispõe sobre os programas de pós-graduação stricto sensu na modalidade a distância.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017b. Regulamenta o art. 80 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
GATTI, Bernadete A.; BARRETTO, Elba Siqueira de Sá; ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de; ALMEIDA, Patrícia Cristina Albieri de. Professores do Brasil: novos cenários de formação. Brasília: UNESCO, 2019.
JOHNSTON, Nicole. Is an online learning module an effective way to develop information literacy skills? Australian Academic & Research Libraries, v. 41, n. 3, p. 207-218, 2010.
MEANS, Barbara; TOYAMA, Yukie; MURPHY Robert; BAKIA Marianne; JONES Karla. Evaluation of evidence-based practices in online learning: a meta-analysis and review of online learning studies. U.S. Department of Education Office of Planning, Evaluation, and Policy Development Policy and Program Studies Service, 2010.
YANG, Ya-Ting C.; NEWBY, Timothy J.; BILL, Robert L. Using Socratic questioning to promote critical thinking skills through asynchronous discussion forums in distance learning environments. The American Journal of Distance Education, v. 19, n. 3, p. 163-181, 2005.