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O Bento que para mim fica
Adalberto Tripicchio(*)
12/01/2007
Como é difícil falar-se de alguém notável, que se destaca entre seus pares, e fora deles. E Bento foi um desses. Não teria o que acrescentar ao que está sendo escrito na mídia e nos livros quanto ao seu talento filosófico. Sobre sua sabedoria mais-que-erudita. E quem o diz são aqueles dentre os que melhor o conheceram como intelectual. Também, colocar datas, localidades, nomes, fica para os enciclopedistas que irão recompor seu verbete.
Por que aceitei, então, escrever esta breve mensagem?
Primeiro, como uma maneira de desabafar um tanto minha alma sufocada pela tristeza da sua perda. Segundo, porque privando dele, momentos dos mais irreverentes ante esta vida à qual somos lançados de modo absurdo, seria egoísmo não abri-los um pouquinho.
Bento era um musicófilo, mais, um musicólogo. Amava na música popular, tangos e sambas-canções. É aí que eu entro. Quando estávamos desinibidos, ele virava Carlos Gardel, Maysa, Dolores Duran, Tito Madi, e por aí vai. Eu fui, boa parte das vezes, seu acompanhante violonista titular nestes quase dez anos de amizade.
Ele conhecia todas as letras do Alfredo Le Pera – parceiro de Gardel – e, depois de cantar todos os clássicos, brindava-me solenemente com meu favorito “Por una Cabeza”. De terno e gravata borboleta – esta, uma identificação com seu pai -, chapéu, além de um casacão 7/8 e um cachecol, que colocava em torno do pescoço, a la típico portenho.
São daqueles poucos momentos vividos com tal intensidade e comunhão, que se tornam eternos.
Como um bom homem à gauche, era gozadíssimo, quando, imitando Maysa, cantava “Meu muro caiu” – o de Berlim – em vez de “mundo”.
Além da música, Bento foi um poeta da vida. Certa vez, indiquei-lhe um composto da homeopatia, a Nux vomica, fármaco muito conhecido da especialidade. Imediatamente, Bento recitou-me num fôlego só uma das estrofes mais complicadas e difíceis de se decorar e falar, de Drummond:
“[...]
Vergonha da família
que de nobre se humilha
na sua malincônica
tristura meio cômica,
dulciamara nux-vômica.
[...]“.
(é de dar cãibra na língua, não?!)
A cidade de Jaú perdeu seu filho, a de São Carlos seu ilustre mestre, o Brasil um de seus maiores filósofos, e eu perdi o amigo. Amigo, que apesar do seu porte acadêmico, sabia oferecer conversas francas, simples e singelas. Certa vez, em inícios de 2000, ele me disse: “Adalberto, eu ainda não escrevi o troço…, aquele troço”. E só. De pronto, entendi perfeitamente o que ele queria dizer com essa palavrinha: a minha grande obra, a síntese de meu pensamento filosófico, e por aí vai.
Curioso é que ele já havia escrito seu “troço”, sem ter se dado conta disso. E o fez com a sua tese de livre-docência na USP, “Presença e Campo Transcendental: Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson”, em 1964, reconhecida no seu justo valor, somente em 2002 (!), pelo Collège International de Philosophie com sede em Paris, que promoveu imediatamente sua tradução francesa, considerando-a como a obra mais importante de tudo o que já se escreveu sobre Henri Bergson no planeta. Temos de lembrar a reconhecida xenofobia dos franceses, especialmente a do parisiense pós-guerra, em reconhecer um trabalho digno que pudesse vir de alguém nativo abaixo do Equador. Vindo de um brasileiro situado no último dos mundos do PIB, do interior-sertanejo de São Paulo e por aí vai, acrescentando e ensinando-lhes algo!
Em fins de 1990, Bento coordenava a Banca de Seleção para Pós-Graduação em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos-SP. Eu estava sendo examinado, e, em dado momento, argumentei o que pretendia com a Filosofia da Mente no meio psiquiátrico. Citei, criticamente, a arrogância da alopatia, e que as bulas sérias de qualquer remédio deveriam começar sempre com a frase: “não se conhece o verdadeiro mecanismo de ação deste fármaco” – o que, de fato, aparece em algumas delas. Bento, que sabia de minhas raízes religiosas no protestantismo, não perdeu a deixa para dizer: ‘da mesma forma que Lutero insurgiu-se contra a Bula Papal, dando início à Reforma, você hoje repete o gesto com a Bula Farmacêutica’ “.
Esse era seu humor: elegante, inteligente e sério.
Como a maioria dos grandes pensadores Bento tinha uma natureza reservada e profundamente emotiva. Para quem não o conhecesse informalmente poderia erroneamente achá-lo sisudo. Esse era o Bento filósofo. Circunspeto, conseqüente e assumido. Mas, sempre afável, solícito e generosos com qualquer um que o procurasse.
Quando conseguia desmontar sua timidez – não encontro melhor palavra – tornava-se um homem de bem com a vida, com um ânimo cheio de vigor.
Como quando, avô-coruja, contou-nos de seu netinho ainda pequenino, desabafando contra um colega nosso, que lhe estava importunando: “Pare de amofinar-me!” Não tem jeito mesmo. Penso que a anormalidade da Curva de Gauss naquela família é genética.
Bento e eu fomos prejudicados pela repressão da ditadura militar. Mais a ele do que a mim, claro está. Eu tive a oportunidade de ser indenizado pelo Governo, após a Anistia, mas recusei. Pensando nisso, algum tempo depois, senti-me um tolo em não ter aceitado um dinheiro que eu tanto precisava. Mas, Bento escreveu-me um e-mail consolador dizendo que também havia recusado benefícios por nossa postura ideológica na época. Que estava chateado com aqueles que chegaram a receber até pensão vitalícia, além da indenização. Foi um alívio para mim, saber que estava em tão respeitosa companhia.
Certa vez, em um evento nacional de filosofia, após sua palestra, alguém do auditório fez-lhe uma pergunta confusa e hermética. Bento, calmamente e sem perder a oportunidade, deu-lhe uma resposta mais confusa e hermética ainda. Ao final, disse: “Pergunta besta, resposta besta! “, para alegria geral. Esse era o Bento da intimidade dos amigos.
Duas curiosidades da personalidade rica e complexa, porém diáfana de Bento. Primeira, é sabido que os grandes intelectos habitam outros mundos, e se perdem nas miudezas práticas e prosaicas do nosso cotidiano. Por exemplo, Bento nunca dirigiu automóvel, por maior necessidade que possa ter passado.
Segunda, certa vez Bento observando uma estante minha de livros, encontrou algo de seu grande interesse, e pediu-me emprestado. Senti-me honrado pela oportunidade do discípulo oferecer algo ao seu mestre. Por outro lado, um sentimento menor tocou-me: ‘adeus, meu livrinho’. Como é que o Prof. Bento Prado Jr. habitado por um milhão de idéias geniais, que navegam entre seus brilhantes neurônios, ir-se-ia lembrar que, um dia, pediu-me um livro emprestado. Cheguei a pedir a meu importador de livros que procurasse por um outro exemplar daquele ora perdido. Para minha perplexidade e espanto, duas semanas depois, Bento devolveu-me o livro, são e salvo, o qual tinha xerocado. Está claro aí que o que lhe guiava na vida era sua escala de valores.
São muitos os recortes da saudade que tenho por Bento, porém fico onde estou, pois a emoção começa a embargar minha memória.
Infelizmente, o cigarro o levou. Mas fica o eterno pano-de-fundo da magia encantadora que Bento conseguia exalar pelos poros, tornando nossas vidas um tanto mais leves e menos absurdas.
(*) Professor-Convidado da UFSCar-SP.
Lindíssima contribuição, Adalberto. Não o conheci pessoalmente. Talvez você pudesse, mesmo que em outro momento, fazer um apanhado da obra dele, uma orientação para quem deseje penetrar na obra do Bento.
É de tirar o fôlego ler o que você escreve, Adalberto!
Apaixonei-me de pronto pelo Prof. Bento ao ler seu texto.
E estou agora de luto pela sua morte e por não ter tido a oportunidade de conhecê-lo.
Observação: Esse artigo saiu nas bancas, vários dias depois de eu ter publicado no blog do João Máttar, pela Revista Ciência & Vida – FILOSOFIA, Ano I – Nº 08, pp. 39-41, 2007.
João, a Revista Ciência e Vida me pede para assinar um contrato de exclusividade sobre este tão simples e singelo texo. Eu vou dizer, simplesmente, que dei primeira mão a vc neste seu maravilhoso blog. Eles que lhe paguem as multas!
Não entendi muito bem, Adalberto. Não precisa pagar multa nenhuma (rs), mas podemos mantê-lo por aqui?
Claro que sim, mano.
Tava sumido, mano! Tem tanta coisa nova para vc comentar!
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Aos nossos estimados leitores
Só agora dei-me conta dos vários erros de digitação nesta pequena homenagem a Bento. Por exemplo, o tango referido escreve-se “Por una cabeza”. E por aí vai tantos outros.
Desculpem-me
Um forte abraço amigo João
adalberto
Em tempo, leia-se ao final: “E por aí vão tantos outros”.
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