Virginia Tech

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Em tragédias como esta, no início o melhor é ficar quieto, mas acho que já podemos começar a conversar um pouco sobre o que aconteceu.
Em geral, focamos no assassino – “retrospective sense making”, todo mundo já sabia, ele era um psicopata etc. O desafio é intervir antes que coisas dessas aconteçam.
São todos nossos colegas por lá, e compartilhamos da tristeza e do luto deles. Aliás, o site da universidade está de luto.

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Liviu Librescu (foto abaixo), 76 anos, sobrevivente do holocausto e professor de engenharia e matemática, parece que segurou a porta para que seus alunos pudessem pular a janela – mas ele não pulou – foi morto com um tiro que passou pela porta, enquanto ele impedia a entrada do assassino.

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Paulo Freire, em seu Pedagogia do Oprimido, afirma que só é possível ocorrer educação se os professores amam os seus alunos.
Sempre me lembro daquele sargento ou tenente que, no zoológico, pulou para salvar uma criança que tinha caído no poço das ariranhas. Ele morreu, mas salvou a criança. São gestos rápidos, mas que demonstram não só heroísmo, mas amor. Muito amor.

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14 respostas a Virginia Tech

  1. Odele Souza disse:

    João,

    Fiquei chocada ao ler nos jornais sobre esta tragédia. Impressionante e muito triste. Pessoas de inteligência brilhante que passam a vida estudando e se aperfeiçoando, se tornam referência naquilo que fazem, se doam incodicionalmente como no caso do professor que protegeu os alunos com o próprio corpo. E de repente, um psicopata num gesto tresloucado apaga tudo isto. Como você diz: “O desafio é intervir antes que coisas dessas aconteçam.” E enquanto esse desafio não for vencido João, nos sentimos assim, totalmente impotentes.

  2. Caro João e Odele, acho que todos se lembram aqui do filme TIROS EM COLUMBINE, de Michael Moore; no qual ele analisa de forma crítica a tragédia – assassinato de 12 estudantes e 1 professor por 2 estudantes em uma escola pública em Columbine, sendo que os assassinos, também estudantes desta escola, praticaram o suicídio em seguida. Essa ato ocorrido em 1999 tanto como o ocorrido semana passada em uma Universidade norte-americana reflete mais que a loucura de um único indivíduo – aponta sim para a loucura coletiva – valores distorcidos numa sociedade na qual a fama, o dinheiro e o sucesso compõem o ideal do sonho americano. A única diferença entre nós e eles é que aqui devido ao uso restrito de armas de fogo; com certeza, se tivessemos a legislação liberal vigorando em terras tupiniquins, teríamos muito mais “Columbines” ou “Virginias Techs” que lá. Porque as pessoas também estão “enlouquecidas” por aqui.
    Abraços a todos,

  3. João Mattar disse:

    Acabei de ler um artigo sobre os professores e alunos de inglês que já se preocupavam com o comportamento do Chon.

    http://www.nytimes.com/2007/04/20/us/20english.html?ex=1334721600&en=2d689232f5a03615&ei=5088&partner=rssnyt&emc=rss

  4. Wanderlucy disse:

    Concordo com a Regina.
    Não é uma fato isolado.
    E a temática da banalização do porte de armas abordada no filme “Tiros em Columbine”, de Michel Moore é fator crucial para barbáries como esta da semana passada em Virgínia.
    Quanto ao “enlouquecimento” geral que também podemos observar por aqui, Regina, eu o vejo como tão grave ou até mais grave do que o que vem acontecendo nos Estados Unidos, pois temos balas perdidas matando até crianças a toda hora aqui no Brasil, enquanto lá nos Estados Unidos esses casos acontecem com intervalo de muitos meses.

  5. Wanderlucy disse:

    Vale a pena ler este texto de NELSON ASCHER, publicado na Folha de São Paulo de hoje, 23/04, Caderno Ilustrada.

    Lições de Virginia Tech

    Diga-me qual a tua interpretação para o massacre nos EUA e eu te direi quem és

    TERÇA-FEIRA PASSADA , Cho Seung-hui, estudante sul-coreano de 23 anos, cuja família se estabelecera em 1992 nos EUA, matou a tiros, entre colegas e professores, 32 pessoas no Instituto Politécnico da Virgínia (Virginia Tech), onde estudava Letras. Por que o rapaz, armado com duas pistolas que adquirira, perpetrou esse massacre e como isso foi possível?
    A resposta é simples, óbvia e só não a aceitam aqueles que se deixaram voluntariamente cegar por algum tipo de propaganda maliciosa.
    É fácil adquirir armas de fogo nos Estados Unidos, bem mais do que na Europa e no Brasil. Armas, como se sabe, matam (como, aliás, caminhões cheios de fertilizante, bombas caseiras, facões etc.). Um homicida atacadista sempre vai dispor ali das ferramentas necessárias para realizar seu trabalho. Além disso, como na Virginia Tech as armas eram rigorosamente proibidas, nenhuma das vítimas potenciais dispunha dos meios para se defender de alguém disposto a transgredir as leis e as normas locais. Caso algum estudante estivesse armado, ele poderia ter parado o assassino.
    As escolas e universidades norte-americanas são competitivas, voltadas para o mercado. Os alunos são, desde cedo, qualificados como “winners” (vencedores) ou “losers” (perdedores), e estes últimos amargam o desprezo, seja das instituições, seja dos colegas. A pressão é insuportável e, hora dessas, a corda arrebenta. Convém mencionar também que, nos EUA, os universitários são crianças mimadas que, não mais submetidas à disciplina e às exigências rigorosas de antigamente, vivem numa redoma artificial de bem-estar na qual os administradores fazem de tudo para que ninguém se sinta diminuído diante dos outros. Os sentimentos de todas as minorias, de quem quer que tenha uma reclamação, são protegidos pela imposição da correção política e, portanto, os jovens nunca estão preparados para enfrentar o mundo real.
    Como a sociedade mais injusta, imperialista, militarista e violenta que já existiu, a americana é o caldo de cultura da violência individual, violência esta encorajada pelos meios de comunicação, videogames e pela ideologia do país. Jovens facilmente influenciáveis absorvem os valores oficiais e cometem barbaridades. Além disso, as instituições de ensino superior são verdadeiros centros de doutrinação anticapitalista e antiamericana, nos quais a democracia local é retratada como uma tirania. Professores, inclusive os de Letras, falam de culpa coletiva e pregam a destruição revolucionária do sistema. Alunos facilmente influenciáveis ouvem esse blábláblá e tomam a justiça nas próprias mãos.
    Vale a pena acrescentar razões suplementares para o massacre. A guerra do Iraque, que legitimou a violência. Os protestos contra a guerra do Iraque, que indispuseram os americanos entre si. A repressão sexual, que canaliza a testosterona rumo a opções perigosas. A licença sexual, que leva aqueles que não se dão muito bem neste jogo a se tornarem rancorosos e vingativos. A discriminação de que são vítimas os imigrantes. O excesso de imigração, que não dá tempo aos recém-chegados de se adaptarem à cultura local. A miséria e a fome. A opulência e a obesidade. O aquecimento global.
    E quanto a Cho Seung-hui? Ele, afinal, era o verdadeiro culpado. Ele era, afinal, a vítima principal. Cho era um narcisista que queria aparecer. Cho era um introvertido que queria desaparecer. Ele era um maluco anti-social cujos próprios colegas previam que certo dia faria uma dessas. Era um rapaz normal, enlouquecido por um ambiente cruel e predatório. Era um herói, um mártir corajoso que, com seu sacrifício, ajudou a punir uma sociedade injusta.
    Todas as explicações acima e muitas outras, às vezes em combinações complexas, podem ser achadas na imprensa, na internet, na mídia em geral. Alguma faz sentido? Talvez. Todas juntas? Só numa multiplicidade de universos paralelos. Se há pouco de sério a dizer sobre Cho e o massacre, a variedade quase infinita de enfoques e interpretações aponta, porém, para algo interessante.
    Poucas coisas despertam tanto a curiosidade humana como o crime, principalmente os assassinatos em massa, os hediondos e os inexplicáveis. Cada indivíduo ou grupo os interpreta de maneira a que façam sentido na sua visão mais ampla de mundo, mas de modo também a que não a refutem nem contradigam. Como o mistério mais fascinante neste vale de lágrimas, nada revela tão bem as crenças e a ideologia de uma pessoa quanto o modo segundo o qual ele ou ela busca explicar a criminalidade em geral e, em particular, o homicídio.

  6. Filipe Pinheiro disse:

    Professor João
    Quando fui começar a ler esta sua última postagem, comecei no início a pensar no que ia comentar. Iria falar sobre os acontecimentos, os problemas da sociedade americana, dos alunos e tal. Mas quero dar os parabéns porque você acabou focando no professor que fez o possível para dar uma chance de vida para seus alunos. É impressionante ações como esta, em um mundo que o ódio muitas vezes predomina e o individualismo é marca do ser humano ocidental.

    Um abraço.

  7. adalberto disse:

    O que eu penso de tudo isso:

    ATENÇÃO

    Este artigo nos atinge profundamente – não pela maneira como foi escrito, mas pelo tema que aborda. Todos nós temos um psicopata adormecido em nosso inconsciente dinâmico – não o reprimido do nosso dia-a-dia, mas o inconsciente herdado filogeneticamente, chamado de vital ou procedural, e que jamais é conscientizado. Isto faz com que nos identifiquemos, involuntariamente, com muitas das atrocidades aqui relatadas. Fato este que nos assusta sobremaneira. Mas, é melhor conhecê-lo do que ignorá-lo. Esta é a essência que R.L. Stevenson tentou nos passar no seu livro “Dr. Jekill (O médico) e Mr. Hyde (e o monstro)”. Penso em mostrar um artigo que seja Serviço de Utilidade Pública, municiando o leitor com alguns elementos a mais para que melhor se proteja desta matéria diária dos noticiários.

    da Folha de S.Paulo
    09/11/2002 – 17h43
    Suzane pede para advogada avisar irmão que está triste
    A estudante Suzane Louise von Richthofen, 19, que confessou ontem ter participado da morte de seus pais, Manfred e Marísia von Richthofen, pediu hoje a uma advogada que a visitou na prisão que contasse a seu irmão, Andreas, 15, que ela está muito triste. O garoto está com um tio.

    da Folha de S.Paulo
    09/11/2002 – 04h19
    Crime da rua Cuba continua sem solução
    Conhecido como “o caso da rua Cuba”, o assassinato do casal Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cecilia Delmanto Bouchabki, ocorrido na véspera do Natal de 1988, permanece insolúvel. Na ocasião, o filho mais velho do casal, Jorge Delmanto Bouchabki, o Jorginho, então com 18 anos, passou a ser um dos suspeitos.

    da Folha de S.Paulo
    21 Maio 22h01min 2004
    Gil Rugai nega assassinato do pai
    O estudante Gil Grego Rugai, de 21 anos, negou, hoje, à Justiça ter assassinado seu pai, o publicitário Luiz Carlos Rugai, de 41, e sua madrasta, Alessandra de Fátima Troitiño, de 33. Em seu interrogatório, na 5ª Vara do Júri, o réu afirmou ainda que não esteve na casa do pai no dia do crime. Laudo recente da perícia constatou que a pegada de Gil é compatível com uma marca encontrada em uma porta arrombada da casa do publicitário.

    da Folha de S.Paulo, no Rio
    19/12/2003 – 21h40
    Guilherme de Pádua terá de indenizar Glória Perez em R$ 4,6 mi
    A novelista Glória Perez conseguiu na Justiça o direito de receber uma indenização de pelo menos R$ 4,6 milhões de Guilherme de Pádua e da editora O Escriba, que publicou o livro “A História que o Brasil desconhece”. Nele, o ex-ator conta sua versão para a morte da atriz Daniella Perez, filha da novelista, ocorrida em 28 de dezembro de 1992.
    da Folha Online
    14/10/2003 – 14h17
    Justiça suspende benefícios de condenados pela morte de pataxó
    A Justiça suspendeu hoje o benefício de regime semi-aberto para três dos quatro rapazes condenados pelo assassinato do índio pataxó Galdino de Jesus. O índio, de 44 anos, teve o corpo queimado, em 1997, enquanto dormia em um ponto de ônibus de Brasília.
    Eron Chaves Oliveira, Max Rogério Alves e Antonio Novély Cardoso de Vilanova tinham autorização para sair do presídio da Papuda exclusivamente para trabalhar e estudar.
    da Folha Online
    14/11/2003 – 11h39
    Estudante foi violentada e torturada por acusados, diz polícia
    A estudante Liana Friedenbach, 16, morta com o namorado Felipe Silva Caffé, 19, em Embu-Guaçu, na
    Grande São Paulo, foi violentada e torturada pelos acusados de envolvimento na morte do casal, segundo afirmaram policiais que investigam o crime. O resultado do laudo pericial sobre o estupro, no entanto, ainda não
    foi concluído.
    O adolescente R.A.C, 16, o Champinha, apontado como o líder do grupo, “idealizou o abuso contra Liana, oferecendo-a aos outros comparsas”, disse o delegado Silvio Balangio Júnior, da Delegacia Seccional de Taboão da Serra.
    Felipe morreu com um tiro na nuca no último dia 2, e Liana, a facadas, na madrugada de quarta-feira, segundo a polícia. Ainda segundo a polícia, Champinha foi o responsável por matar Liana e ajudou Paulo César da Silva Marques, 32, o Pernambuco, a matar Felipe.

    da Folha de S.Paulo
    27/06/2005 – 15h24
    Serial killer admite ter matado 10 pessoas no Kansas
    WICHITA (Reuters) – Um serial killer descreveu calma e objetivamente, em um tribunal do Kansas (EUA) na segunda-feira, como matou 10 pessoas, chamando suas vítimas de “projetos” para realizar suas fantasias sexuais. Dennis Rader, que confessou a culpa em 10 homicídios, contou de maneira indiferente como deu um copo de água a uma mulher depois que ela vomitou, só para estrangulá-la com uma corda, enquanto seus filhos, trancados em um banheiro, gritavam pela mãe. Em outra ocasião, ele enforcou uma menina de 11 anos no porão da casa dela, e se masturbou ao lado do corpo, depois de ter assassinado seus pais e um irmão de 9 anos no andar de cima. Os detalhes de uma série de assassinatos cometidos durante 18 anos por Rader foram narrados perante um tribunal do Condado de Sedgwick. Descrito como um homem religioso, Rader, que hoje tem 60 anos, será sentenciado em 17 de agosto.

    da Folha de S.Paulo
    04/07/2002 – 15h24
    Serial killer Jeffrey Dahmer
    MILWAUKEE-WISCOSIN – Jeffrey Dahmer, conhecido como “o açougueiro de Milwaukee”, cometeu 17 assassinatos entre 1978 e 1991, e reconheceu que comeu a carne de três vítimas. Morreu na prisão, assassinado por outro presidiário, em 1994.

    Sexta-feira, 08 de novembro de 2002 – 21h52
    Matam os pais, e a maioria não mostra remorso

    São Paulo – Eles matam os pais, mas a maioria não demonstra remorso pelo que fez. Alguns tentam negar ou justificar-se. Roberto Peukert Valente disse que atirou nos pais e em três irmãos como se disparasse em “sacos de batatas”. Ele tinha 18 anos. Gustavo Pissardo tinha 22 anos quando teve o acesso de fúria que custou a vida dos pais, avós e uma irmã.
    A estudante Andréia Gomes Pereira do Amaral e o comerciante Constantino Cheretis, ambos com 20 anos, mataram, segundo a Justiça, para ficar com a herança e para se livrar de um incômodo: os pais. Carlos Fabiano Faccion, de 25, fez isso porque se opunham ao seu casamento. As vítimas foram pegas de surpresa, e os motivos eram fúteis.
    Esse é um crime ao qual a sociedade dedica uma repulsa antiga. O historiador Tito Lívio conta que matar os pais era considerado pelos romanos o mais grave delito comum que alguém podia cometer. Os culpados eram atirados da Rocha Tarpéia, a mais escarpada face da Colina do Capitólio.
    Peukert levou uma bronca da mãe em 1985. A música que ele ouvia de madrugada estava alta. Esperou um pouco, apanhou uma arma e atirou na mãe, no pai e nos irmãos de 18, 17 e 8 anos. Como os pais ainda agonizavam, resolveu esfaqueá-los, pois “estava determinado a matar”.
    Pissardo cometeu seu crime em 1994 em São José dos Campos e Campinas. Confessou após o enterro dos parentes. Andréia matou em 1994 o pai, um comerciante, e a mãe no apartamento triplex onde moravam, em Santos. Para tanto, usou o namorado, o adolescente D., de 17 anos.
    Cheretis foi condenado por matar os pais, Emanuel e Letaxia, com 21 facadas em 1993, no Brás, centro de São Paulo. Carlos Fabiano matou neste ano os pais, Carlos Alberto, de 52 anos, e Maria Aparecida, de 46, e três parentes em Batatais, no interior paulista. No fim, todos acabaram presos.

    * * *

    Resta-nos criar um oportuno e impreterível distanciamento afetivo para suportar o transbordamento agressivo e destruidor destas manchetes. Assim, como um mecanismo natural de defesa de nossa psique, vamos, aos poucos, nos auto-anestesiando ante a brutalidade desta monstruosa e gratuita violência cometida entre humanos, e da qual não temos como ignorar. Esta realidade horripilante desafia nossa melhor ficção literária a superá-la. Um exemplo interessante é a reação do público cinéfilo norte-americano desde a guerra do Vietnã. Para que ele seja emocionalmente atingido, nas suas confortáveis salas de projeção, é preciso que se mostre nos filmes de ação, algo que somente os efeitos especiais de extermínio da vida conseguem atingir, para que possa ser ultrapassado o limiar de excitabilidade neuronal destes seres, tal o nível de desconexão sináptica atingido por eles no seu cotidiano da não-ficção.
    Também os europeus do pós-guerra, claro. Nos dias de hoje há uma exposição de arte itinerante pelas suas grandes capitais. As longas filas são para apreciar esculturas feitas em cadáveres humanos por um anatomista de Heidelberg, o Prof.Dr. Gunther von Hagens, que consegue comprar de famílias pobres chinesas os corpos de seus familiares presidiários, tudo dentro da lei. Quem já entrou em contato com este trabalho (não pretendemos discutir seu valor estético, e, até elogiamos sua técnica original de plastinação da matéria-prima), e quiser vê-lo mais de perto, assista o filme alemão, “Anatomia” (Anatomie), de 2000, dirigido por Stefan Ruzowitzky, com a bela Franka Potente, no proscênio. Parece que conseguimos, por alguma via, exportar o nosso gigante adormecido aos quatro cantos do mundo.

    * * *

    Em geral, as perplexas testemunhas das tragédias jornalísticas dizem: “… era um rapaz um tanto tímido, mas simpático”, ou “… essa garota era uma graça, amável com todos nós”, ainda “… encontramo-nos no elevador do prédio inúmeras vezes, e este moço sempre nos cumprimentava, nunca tivemos uma queixa dele”.
    A desvalorização da vida do Outro, e sem causa aparente, ficou marcada na história da literatura universal do crime pelo livro “Laranja mecânica” (A clockwork orange), de Anthony Burgess, que virou filme por Stanley Kubrick. A única ficção que ali existe é a tentativa de recuperação do protagonista, o adolescente Alex, por meio de técnicas de condicionamento psicológico(1), no mais, tudo é absolutamente verossímil.
    Opto por fazer uma mixagem entre a realidade e a ficção cinematográfica a fim de atenuar um tanto a virulência deste texto. Insisto que minha intenção não é a de chocar o leitor, mas de alertá-lo e preveni-lo contra esta espécie mutante, o Homo desolator (devastador; que espalha a desolação – foi o melhor que consegui em latim).
    Pois é, e, basta o estudo da morfologia de um delito, para identificar-se se foi cometido por um psicopata, ou não. E, entre nós, eles aparentam a mais absoluta normalidade psíquica e social. Mesmo os policiais confessam, muitas vezes, ficarem chocados com tais acontecimentos, apesar dos anos de experiência com o crime.
    Claro que nem todo homicida é psicopata. Para se chegar a um diagnóstico, se houver esta suspeita, a justiça nomeia um ou mais psiquiatras-peritos para consultarem o criminoso. Ao exame, o que mais chama a atenção nos psicopatas é a sua frieza e total descompromisso com o que narram, em detalhes milimétricos, de como mataram suas vítimas.
    No caso de Suzane (sendo caso público e notório não tenho a proibição do sigilo médico), por exemplo, contou-me quem a acompanhou no dia da reconstituição do assassinato de seus pais, que ela estava absolutamente calma e segura, e, notem, era a primeira vez que voltava à sua casa depois da tragédia. Dissimulada ao extremo, quando percebia que ia ser fotografada ou filmada, levava um lencinho às vistas, para simular um choro.

    * * *

    Psicopata, para a escola francesa de psiquiatria, é um termo genérico, como o seria para qualquer outra especialidade médica, por exemplo, pneumopata, nefropata, cardiopata etc. Para a escola hispano-germânica(2), psicopata define uma categoria específica de anomalia psíquica. Não é uma síndrome, menos ainda uma doença. É uma personalidade anormal, no sentido de ter todas as qualidades da normal, tais como, raciocínio temático, boas atenção e memória, inteligência às vezes elevada, afetividade, poder decisório e apto para a ação, porém, cada qual, em quantidades proporcionalmente diferentes (distúrbio quantitativo) da média estatística. Alguma dessas qualidades pode até faltar por completo, como no tipo que estamos expondo: a emoção. Representa um risco para a comunidade. Seu conceito, portanto, é mais social do que psiquiátrico, é uma sociopatia. O inglês a chama moral insanity.
    Identificar um indivíduo como personalidade psicopática, hoje chamada eufemisticamente de “transtorno de personalidade”, não é fácil pelo simples fato de ser ele o espécime da Zoologia que mais se assemelha ao Homo sapiens sapiens comum (o “normótico” = fusão de normal com neurótico, condição esta da qual ninguém de nós escapa; este nome não é técnico, mas é de bom humor).
    O psiquiatra alemão Kurt Schneider, que foi Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Heidelberg, e Reitor da mesma, dedicou grande parte de sua vida acadêmica e profissional ao estudo deste tipo de personalidade. Aliás, o professor Schneider chegou a uma lista com dez tipos diferentes delas. Para nós, em psiquiatria clínica e forense, interessa-nos mais de perto uma destas dez, a personalidade chamada “sem sentimento”, sendo que as outras nove(3) não trazem maior risco à sociedade, podendo até ser usadas como um padrão classificatório para a tipologia psíquica humana normal. Portanto, quando aqui uso o termo psicopata, entenda-se que é o tipo “sem sentimento”.
    Schneider (1974) tentou uma conceituação geral para esses dez tipos de existência: “A personalidade psicopática é aquela que sofre ou faz sofrer à sociedade”. Ainda que não seja uma definição médica ou psicológica, mas social, ela é muito imprecisa e discutível, da qual nenhum ser humano escaparia – quem discordar que atire a primeira pedra. Estaríamos, assim, arrogante e machadianamente(4), psiquiatrizando a Humanidade inteira. Mas, a verdade é que o fenômeno existe por si só, chamando como se quiser, ou dando qualquer outro tipo de definição.

    Convivi vários anos com psicopatas que cometeram delitos e foram internos do Manicômio Judiciário do Complexo Hospitalar de Juqueri, em Franco da Rocha-SP. Sinceramente, nunca surpreendi qualquer destes psicopatas expressando algum tipo de sofrimento, fato que, para mim, contradiz a definição tentada por Schneider.
    Para entendermos o funcionamento psíquico deste Ser, e, da maneira a mais simples possível, começo dizendo que nossa personalidade é composta de Razão, Emoção e Vontade. Isto é, de um conjunto de funções intelectuais (razão), de funções afetivas (emoção), e de funções volitivas, sendo que estas últimas nos levam, após uma escolha e decisão, à ação, completando a esfera volitivo-ativa. Estas três áreas da personalidade funcionam em perfeita integração, formando uma individualidade indissolúvel.
    Na formação da personalidade do psicopata sem sentimento, encontramos um grande vácuo no setor das emoções. A sinonímia deixa isto claro: frio de ânimo, desalmado, inafetivo, atímico. Aos antigos psiquiatras mais radicais da escola genético-organicista (que tratavam um paciente sem alma) não ficavam dúvidas dos determinantes hereditários desta anormalidade. Machado de Assis diz que a ocasião faz o furto, pois o ladrão já nasce feito. Esta expressão do “bruxo do Cosme Velho” entendo-a que seja fruto de suas leituras dos clássicos da Psiquiatria fisicalista francesa da época, que ele as lia no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Na atualidade prefiro seguir o moderado caminho do meio, sem cair no pólo oposto dos psicodinamicistas (que tratam um paciente sem cérebro), mas dando a devida importância aos estímulos da Cultura na qual se desenvolveu o examinando.
    No máximo, posso concordar que o temperamento (a maneira de sentir) seja predominantemente genético, e que o caráter (a maneira de agir e reagir) seja predominantemente memético(5) (cultural). Aliás, a dicotomia genético/memético, ou inato/adquirido(6), nas origens da conduta humana se mostra refratária a uma qualificação neste sentido, na medida em que ela é um produto complexo destas duas fontes de determinação apontando, sempre, para uma integração destes fatores. O professor Freud costumava dizer: “O adquirido hoje, será o herdado amanhã”.
    Para mim, então, personalidade é o conjunto formado pelo temperamento, pelo caráter e pela inteligência em conseqüência da unidade inato/adquirido na qual se desenvolve. Ainda, corroborando com esta concepção, do ponto de vista biológico-evolutivo, nosso cérebro cresceu em tamanho muito mais pela demanda Social na relação inter-hominídeos do que pelos recursos armazenados e herdados para enfrentar os desafios da Natureza(7).
    Não se pode garantir que a todo sociopata faltem 100% dos seus sentimentos. Acredito que haja um continuum que vai de 0 a 100 unidades de sentimentos, se assim posso chamar. Digamos que o nível 100 seja a faixa da normalidade, abaixo dele teremos expressões de conduta que irão denunciando o grau de embotamento afetivo do psicopata. Claro que quanto mais próximo do nível 0, maior periculosidade representará para a sociedade.

    * * *

    Em Filosofia dos Valores aprendemos com vários autores que só se pode construir uma Escala de Valores pessoal se tivermos vida afetiva. Costuma-se agrupar os valores em quatro categorias: v. éticos, v. estéticos, v. lógicos, e v. religiosos.
    Ora se faltar sentimento faltarão também os valores todos. Chamar um psicopata de amoral(8), como tantas vezes ouvimos, não esgota a somatória de anormalidades deste indivíduo, pois assim, como lhe falta a ética, para desenvolver uma regra moral, distinguindo a vivência(9) plena do significado de bem e de mal, faltam-lhe, também as demais três categorias.
    Imaginemos um psicopata que entre no Museu do Louvre, em Paris, e com uma faca destrua as pinturas que lá se encontram. Ficaríamos todos chocados. Ao transgressor isto será o mesmo que tomar um copo de água. Para ele não existe o valor estético.
    Ainda, imaginando que um físico genial dos nossos dias descubra a formulação da Teoria Geral do Campo Unificado, e que movido por grande emoção sofra um infarto do miocárdio fulminante. Se um psicopata tiver nas mãos os originais destas equações, ele poderá destruí-las, não por gosto, porque psicopata não tem gosto, mas para zombar da humanidade e mostrar seu poder, sem nenhum remorso. Claro, ele não tem amor pelos valores lógicos (ou, epistemológicos se quiserem).
    Da mesma forma, poderá profanar templos de quaisquer religiões, pois isto nada lhe diz. Ele não tem medo de um castigo. Medo é uma emoção, e as emoções lhe faltam.
    Assim, este tipo de psicopata não tem sentimento de culpa. Em termos psicanalíticos, nele não se forma um Super-Ego. Bem diferente do assassino Raskolnikof do romance “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, publicado no século XIX. A tradução do título seria mais precisa como “Culpa e Expiação”. Nesta obra, o criminoso insuspeito corrói-se tanto de remorso pelo seu ato, e por dois longos anos, que resolve entregar-se às autoridades policiais confessando seu delito.

    * * *

    Do mesmo modo que o psicopata não tem sentimentos em relação ao Outro, também não os têm em relação a si mesmo. Lembro-me, neste sentido, de um matador em série, jovem que fazia ponto no Jardim do Trianon, na cidade de São Paulo, lugar tradicional de garotos de programa onde esperam seus clientes homossexuais. Este matador havia assassinado a facadas mais de uma dezena de clientes. Finalmente foi preso, e constatou-se ser um psicopata. Nesse caso o indivíduo não cumpre pena em Penitenciária, mas fica internado, por medida de segurança, em um Manicômio Judiciário. Era este seu caso e lá eu trabalhava. Certa vez o vi com um alicate nas mãos ensangüentadas arrancando seus próprios dentes. Quando lhe perguntei por que fazia aquilo ele respondeu que era só para ver até onde ele agüentava. Assim, do ponto de vista emocional, ao psicopata tanto faz ir ao homicídio quanto ao suicídio. Entretanto, mortos eles não poderiam exercer sua vontade de poder, por isso, é raro neles o suicídio.
    Lichtenstein e Small (1945) publicaram em seu Tratado de Psiquiatria um exemplo admirável de psicopatia, que se tornou clássico e que aqui transcrevo:

    “Artur Warrer Waite era um cirurgião-dentista, que, em virtude de ter assassinado o sogro e a sogra, foi eletrocutado. Em declaração a um de nós, enquanto estava encarcerado, aguardando julgamento, Waite explicou que, durante o curso de bacharelado e, mais tarde, já exercendo a profissão de dentista, arrombava fechaduras, roubara modelos de dentaduras feitos por outros estudantes e havia mentido repetidamente. Logo que terminasse o curso, pretendia conseguir um lugar de dentista numa empresa na África do Sul”. (…) “Enquanto estava exercendo a sua profissão na África do Sul, roubava todo ouro, prata e platina que encontrava ao seu alcance e levou a sua promiscuidade sexual aos maiores extremos. Quando sua existência se tornara precária por causa da iminência de descoberta dos seus delitos, resolveu praticar os assassinatos, os quais mais tarde foram realizados. Ainda não mantinha relações com suas vítimas, mas conhecia sua reputação. Tratava-se de pessoas que viviam em casa própria na mesma cidade onde ele nascera, e tinham fama de ricos. Concluído o plano, renunciou o posto na África do Sul e partiu para Nova York onde se matriculou numa Faculdade para fazer cursos de bacterio¬logia e toxicologia, pois isso fazia parte da preparação de seus crimes”.
    “Pouco antes de concluir os cursos, publicou nos jornais de Michigan a notícia de que estava prestes a regressar à sua cidade na¬tal, onde pretendia abrir consultório. Chegou à cidade precedido do maior prestígio. O cenário estava preparado. Desde logo começou a receber convites de famílias distintas para comparecer a aconteci¬mentos sociais, e apesar de que muitos convites provinham de famílias que tinham filhas em idade de casar-se, e eram pessoas de alto nível social, declinou invariavelmente a todas essas distinções. Esperava que chegasse a escolhida dos seus planos, e, na hora certa, esta não foi recusada. Pouco tempo depois estava casado com a filha daquela família que havia incluído em seu projeto assassino. Não perdeu tempo e, imediatamente, começou a por em prática as suas maquinações diabólicas. Vejamos como ele as descreve:
    “A velha (a sogra) se comportou muito bem, porém o velho me deu um trabalho horrível. Administrei um pouco de arsênico à velha e ela morreu tranquilamente. Era um dia frio e úmido, convidei o velho para dar um passeio. Eu me agasalhei bem e disse ao velho que não havia necessidade de abrigar-se, pois não fazia frio. Molhei seus sapatos e umedeci o assento do automóvel. Deixei os vidros do carro abertos. Na mesma noite começou a queixar-se de irritação da garganta e eu o mediquei, fazendo-lhe uma embrocação com ger¬mes de difteria, porém os malditos não se desenvolveram. Poucos dias depois retirei a lâmpada de sua mesinha de cabeceira e coloquei uma caixa na entrada do seu dormitório para que ele tropeçasse e caísse. Efetivamente, levou uma queda e ficou com um ferimento na tíbia da perna direita; apressei-me em fazer um curativo, tendo aplicado ba¬cilos de tétano sobre a ferida e feito compressão com algodão e espara¬drapo. Mas, infelizmente não aconteceu nada! Nos dias seguintes administrei ao velho, grandes quantidades dos bacilos que tinha à mão: bacilos de tifo, pneumococos e outros que não me lembro no momento. Não adoecia! O velho era imune a todas as enfermidades infecciosas”.
    “Tive que decidir-me a aplicar-lhe arsênico. E isto deu resultado. Ao anoitecer chamou à porta do meu quarto: ‘Vem depressa, por favor. Estou me sentindo mal’”.
    “Mandei que ele se deitasse no sofá e fui ao meu quarto apanhar um frasco de clorofórmio. Molhei bem a almofada com clorofórmio e apertei-a sobre o seu rosto até o momento em que ele morreu. O senhor não imagina o trabalho que me deu aquele maldito velho”.

    Lichtenstein e Small fazem alguns comentários sobre esta observação e dizem que Waite, durante o tempo em que fazia as decla¬rações comia tranqüilamente a sua refeição. Esclareceu ainda que era “amante” da música e como sua esposa tocava piano de maneira admirável, por isso, não tinha sido possível matá-Ia.

    * * *

    Posso lhes garantir que estes jovens, moças e rapazes, que abalam a opinião pública com seus crimes bárbaros, são todos psicopatas (usuários ou não de drogas ilícitas). O verdadeiro psicótico (a loucura popular), raramente chega a este nível. A psicopatia não faz discriminação de idade, orientação sexual, raça, status sócio-econômico, grau de escolaridade, credo religioso, e por aí vai.
    Entre nós, os normais/neuróticos, e os francamente psicóticos, situa-se o psicopata. Ele não é um doente mental. O seu transtorno é quantitativo. Ele não apresenta um sintoma sequer. Claro, pois não tendo emoções, ele não sabe o que é sofrer uma ansiedade, uma crise de angústia, insônia, inapetência, depressão etc. Enfim, jamais procuram um psiquiatra ou um psicólogo.
    A sua recuperação é um constante desafio para nós clínicos, pois o psicopata não responde aos psicofármacos, e, se já entrou na adolescência, nem às psicoterapias. Podemos dizer, sem medo de errar muito, que o psicopata já adquiriu sua total anormalidade até, no máximo, os cinco primeiros anos de vida, e a leva para o túmulo. A incidência de psicopatia em famílias com psicopatas entre seus pares é maior do que na população geral. Também, o estudo de irmãos univitelinos adotados quando recém-natos, e, sendo educados em meios totalmente diferentes, ambos desembocam na psicopatia. Mesmo assim, não abrimos mão da unidade nature/nurture na gênese da formação de sua personalidade.
    Há uns trinta anos, quando observava crianças pequenas matando o passarinho da casa, afogando o gato na piscina, trancando o cachorro no forno aceso do fogão etc., eram sinais promissores de uma psicopatia em formação e se expressando. Hoje, com o nível de violência em que vivemos no cotidiano, já estamos todos familiarizados a sinais como estes. E, se tais exemplos ocorrem, são por pura imitação. O que interessa identificar são os pioneiros, os pontas-de-lança, formadores de opinião, que impõem um novo modelo de conduta anormal.

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    Se a psicopatia vem aumentando? _É claro que sim. Nossa atual Cultura Ocidental, como também a Oriental, é fábrica ISO 9000 de psicopatas. A deterioração dos costumes é fruto da perda dos Valores. Não só do indivíduo, mas muito mais dos grupos, que de grupo em grupo, vamos formando uma nova e mais desumana Cultura (compreendendo-a como o conjunto dos usos e costumes de uma população numa dada região e numa dada época).
    Se um pai de família, há muito desempregado, comete um assalto (roubo à mão armada) para levar comida a seus filhos menores, teremos que ter muito cuidado em identificar sua personalidade. Este indivíduo será necessariamente um sociopata? _Claro que não. Sua atitude pode ser a expressão de desespero dos desassistidos por este mundo afora. Certo é que nem todos os desempregados chegam a esse desfecho. Mas, aí entram os traços de personalidade de cada um, e que não precisam ser exatamente psicopáticos. Lembram-se do filme “Um dia de fúria” (Falling Down), dirigido por Joel Schumacher, com Michael Douglas, que num momento de grande sofrimento doméstico, ao longo de um único dia, surgem-lhe contingências tão adversas, que o personagem é por elas transformado num serial killer. É um bom exemplo acadêmico das chamadas crises psicopáticas, cometidas por alguém que não sendo um verdadeiro psicopata, mas um possível normótico “reagindo”, num evento episódico e isolado, como tal. Goethe dizia que nunca vira crime algum que ele mesmo não pudesse cometê-lo. Entretanto, ao que se saiba, não há notícia de que tenha cometido.
    O transtorno da psicopatia é considerado uma anormalidade, portanto, um fenômeno estatístico, vale dizer, o menos freqüente em relação à média de uma população geral. Porém, em meios específicos, como os do crime organizado, esta relação se inverte, e o padrão da Curva de Gauss mostrará que a conduta psicopática se torna a norma deste ambiente. Nestes casos, não é necessário que uma pessoa tenha passado por um início de vida psicopatizante. Estes seriam os “psicopatas primários”. Existem aqueles que são psicopatizados secundariamente, quando, ao longo da vida, e na microcultura em que se desenvolvem, imperam os fatores deformantes, em relação à macrocultura, do caráter de qualquer ser humano. É quando a chamada “crise psicopática”, há pouco assinalada, passa a fazer parte do cotidiano destes indivíduos. Este modus vivendi permanentemente crítico é incorporado como um padrão de conduta e traço de caráter definitivo na personalidade do delinqüente/vítima.
    Embora em tom de sátira e de exagero, o livro de Bret Easton Ellis, American Psycho, publicado em 1991, mostra a vida antropofágica, de tão competitiva, dos yuppies de Wall Street, que trabalham no ramo do mercado financeiro. Esta história virou filme, “Psicopata Americano”, lançado em 2000, que, diga-se de passagem, foi roteirizado com grande suavidade, pois no original as cenas de sangue e tortura gastam de duas a três páginas. Cito este exemplo, apenas porque mostra como uma Cultura específica se torna importante no desenvolvimento da psicopatia. Naquele terreno sem valores e só de frivolidades, basta uma pequena semente para serem moldadas demiurgicamente aquelas monstruosidades. Coloco no plural, pois não é somente o protagonista, Patrick Bateman quem dá nome à obra. Todos os seus colegas de trabalho foram contaminados pela deformação de caráter. Uns mais, outros menos, dependendo do limiar das tendências psicopáticas inatas de cada um.
    Nunca será demais lembrar daquelas crianças heroínas, que, por serem pequenas, conseguiam ultrapassar facilmente as estreitas aberturas dos porões onde se escondiam os partisans da Resistência Francesa à Ocupação Nazista de Paris. Elas, às escondidas, iam aos mercados públicos das ruas, e, num gesto de bravura conseguiam recolher alimentos, sem que ninguém as visse, especialmente os soldados alemães, para levar àqueles que tentavam proteger sua Pátria morando em fétidos subsolos. Pois bem, uma vez acabada a Guerra, de imediato, estas crianças foram condecoradas como Heróis de Guerra, por Charles De Gaulle. Ora, como elas só aprenderam a fazer esse tipo de atividade na vida, continuaram catando alimentos nos mercados. Mas agora, em tempos de Paz, virou roubo. Acabaram todas presas como marginais delinqüentes (sociopatas).

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    Infelizmente, somente compreendemos razoavelmente bem como se desenvolve, primária e secundariamente, a psicopatia. O caminho inverso, teoricamente, pareceria simples, bastando inverter o sinal daquela via. Este seria o princípio diretor da Psiquiatria, do Sistema Penitenciário e da Febem em nosso país: a despsicopatização do indivíduo para a sua reinclusão na sociedade. Na prática este procedimento tem se mostrado inviável. Sua viagem é de mão única, pois a mesma sociedade que contribuiu para a sua anormalidade, agora queima-lhe os navios. (Situação esta semelhante ao que se faz com os alcoólatras crônicos). Muitos pontos poderiam ser levantados quanto ao resultado desta triste realidade, mas não cabem neste pequeno artigo. E não é só em terra tupiniquim que isto acontece, um bom exemplo encontramos nas máfias internacionais, sobretudo as italianas(10), que Hollywood tanto divulga.
    O diagnóstico diferencial da psicopatia com outros transtornos mentais tem de ser muito criterioso, pois facilmente podemos ser ludibriados pelos psicopatas. Não por eles serem superdotados, como diz a lenda. O que se passa com a inteligência destes indivíduos é o fato dela ser sempre usada com 100% de rendimento. Eles não se afligem por nada, não existe neles o fenômeno da catatimia, que é a interferência da emoção sobre a razão. Quando, por exemplo, nos submetemos a um exame de seleção, é comum ficarmos a tal ponto ansiosos, que nos dá um “branco total”, e mal assinamos nosso próprio nome, isto é catatimia.
    O psicopata não conhece este tipo de reação, sua inteligência pode não estar acima da faixa da normalidade, mas ele sempre a usa in totum, parecendo uma pessoa brilhante. Um bom exemplo é dado por muitos de nossos políticos, que mentem e driblam seus perguntadores da maneira a mais cínica possível, sempre mantendo um sorriso nos lábios, e sem perder o fio da meada. Enquanto que outros, não-psicopatas, tropeçam na língua, ficam tão irritados ou angustiados que acabam se incriminando mesmo na inocência.
    Quanto ao uso, ou não, de drogas ilícitas, inclusive o livre e marketado álcool, é claro, temos que pesquisar em criminalística, e saber se a intenção de cometer o delito já existia antes do uso da droga. Se a intenção é anterior, a droga seria apenas um fator facilitador do procedimento da ação criminosa. Neste caso, a lei desconsidera alguma alteração de consciência pela química usada, pois o dolo já se caracterizava antecipadamente. Isto vale para psicopatas e não-psicopatas.
    No caso do psicopata, embora ele conheça as diferenças entre o bem e o mal, saiba o que é certo e o que é errado, pois tem inteligência para isso, este fator intelectual não o proíbe de cometer um crime, pois para ele nada significa afetivamente, seria o mesmo que distinguir sensorialmente o preto do branco. À psiquiatria forense cabe dizer que ele é semi-consciente pelo delito, à lei, que é semi-imputável, e do ponto de vista jurídico, que é semi-responsável pelo delito cometido, recebendo metade da pena e, como já dissemos, indo para um Hospital Psiquiátrico, sendo reavaliado de 6 em 6 meses, para contemplar a possibilidade do interno ser, ou não, readmitido na sociedade.

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    Aqui entramos numa aporia, ou seja, num beco sem saída. Uma vez formada a personalidade do psicopata, primária ou secundariamente, ela se cristaliza, mostrando-se absolutamente refratária a qualquer tipo de intervenção terapêutica ou reeducacional de que dispomos no momento. Aqueles que acreditam na recuperação de um psicopata, mesmo diante destes fatos, se parecem mais a românticos sonhadores, que nunca se lambuzaram no convívio com esta anomalia, como nós o fizemos.
    Com todo o respeito aos psicanalistas competentes e sérios, mas chamar a psicopatia de neurose de caráter, não a torna uma categoria psicanalizável. Ora, como tratar uma neurose sem sintomas? Como tratar alguém que não tem angústia? Como se estabelecer a transferência para o tratamento analítico, já que ela é uma onda emocional que o analisando investe em seu analista, se ele não tem emoções?
    Eles não apresentam delírios, nem alucinações ou agitação psicomotora, portanto, os fármacos antipsicóticos de nada adiantam. Não conheço um psicopata sequer egresso da medida de segurança que não tenha reincidido no crime. Mesmo o menor infrator, que fica por conta da Febem, quase todos reincidem, embora, é claro, nem todos sejam psicopatas.
    Só pode ser incluído na categoria de psicopata se o indivíduo tiver inteligência nos limites da normalidade, se não houver qualquer tipo de lesão, ou antecedentes de doenças infecciosas, que tenham atingido o encéfalo (cérebro e demais órgãos nervosos no interior do crânio). Enfim, o diagnóstico é feito por exclusão. Quando nada orgânico for encontrado, e a conduta do indivíduo mostrar-se anormal por insuficiência de afeto, aí sim, pode-se incluí-lo nesta lista. Talvez, em um futuro próximo, este conceito ganhe novas luzes.

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    Uma pergunta que costumava fazer aos psicopatas internos sob minha responsabilidade era: “Quando o senhor sair daqui irá matar novamente alguém?” A resposta: “Não seu doutor, de jeito nenhum”. Ao que eu retrucava: “E por que não?” Resposta: “Porque eu não quero voltar prá cá, não”. Fica claro que o assassinato de alguém não lhe faz a menor diferença, o que ele não quer é perder a sua liberdade. E, liberdade para exercer a sua vontade de poder, pois ele só não tem sentimentos, mas bobo que ele não é.
    Este poder fica claro nos matadores em série, o serialkilismo. Só matar suas vítimas não preenche o vazio existencial de um psicopata, que acaba caindo no tédio(11). Para fugir a este tédio, sua vontade de poder se volta ao desafio, em geral, à tentativa de humilhar a polícia que o persegue. Os serial killer sempre deixam pistas para acirrar os ânimos dos que o investigam. Um bom filme que mostra esta situação, sem dúvida, é “Seven – Os sete crimes capitais”, dirigido por David Fincher, e com a interpretação irrepreensível de Kevin Spacey como o psicopata John Doe. Por fim, o psicopata facilita de alguma maneira para ser descoberto e preso. E, numa epifania do macabro poder, conta suas proezas homicidas, num ato de vitória, subjugando as autoridades à imensa angústia da impotência derradeira. Entretanto, o tédio do psicopata será sempre o grande vencedor final.

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    Como saber se o seu vizinho, ou o síndico do prédio, ou a namorada de seu filho são, ou não, psicopatas? _Com absoluta certeza não saberemos antes que um crime o denuncie. Em todo caso, ele poderá, às vezes, ser o popular “esquisito” ou “desequilibrado”; alguém cuja simples presença nos dá um mal-estar indefinido; alguém que pode falar da sua vida íntima, privativa do seio familiar, abertamente a qualquer um que encontre por aí; aquele que entrega a mãe, o pai, os avós, irmãos, amigos, para se safar de alguma banal penalidade, mas, acima de tudo, aquele que demonstra uma gélida incompaixão em relação ao próximo. Na dúvida, não queira identificar se a cobra é venenosa. Saia de mansinho, e não cruze seu caminho, pois, caso contrário, estará comprando um inimigo eterno que um dia o apunhalará pelas costas.
    Nesse sentido, uma analisanda certa vez chegou ao meu consultório transtornada, branca como cera, dizendo que só por um milagre seu filho não caíra no poço do elevador, de um andar alto que era o seu. Depois, mais calma, contou que um jovem de seu prédio novamente havia feito uma “brincadeira” de destravar as portas do elevador, mesmo ele não estando no andar. Seu filho, naquele dia, automaticamente abriu a porta e deu um passo no vazio. Por sorte, ainda estava com a mão no puxador da porta, e com o auxílio da mãe que o acompanhava, conseguiu segurar-se, dar um impulso com uma das pernas, e voltar a apoiar-se na soleira da porta. Ela disse-me que o síndico do prédio já havia repreendido este jovem condômino, que morava só com a mãe separada. Seu pai já havia ido ao prédio, com uma arma à mostra na cintura, e aos berros na frente do condomínio, queria saber quem estava querendo briga com seu filho. Vemos aí o forte componente familiar nas psicopatias. A orientação que dei foi a de não entrar em choque com esta família. Um mês depois minha cliente mudou-se.

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    O que fazer, então, com um psicopata que cometeu um crime?
    Manter o que está estabelecido? Isto é, depois de recluso, se for aprovado no exame rotineiro de periculosidade, voltar à liberdade? _Não, pois fatalmente ele reincide. Além do que não temos como negar sua periculosidade, a não ser se tivéssemos uma pré-monição. Via de regra, o psicopata chega ao grave delito, e somente a partir daí temos uma grande probabilidade de inferir sua identificação. Infelizmente, esta seqüência temporal impede-nos de confirmar a suspeita de psicopatia preventivamente. E, ainda que o fizéssemos, não teríamos nenhum instrumento legal para coibir o crime que se avizinha.
    A ficção científica do excelente autor Philip K. Dick, “Minority Report – A nova lei”(12), que Steven Spielberg tornou filme, baseia-se nesta possibilidade: prender o futuro criminoso antes que ele cometa o crime, por meio de um sofisticado Programa Governamental Pré-Crime, que envolve a fantástica viagem no tempo. Mas, voltando à realidade, mesmo utilizando entrevistas clínicas rigorosas, os mais fidedignos testes projetivos psicológicos, eletroencefalogramas digitais, neuroimagens funcionais, exames bioquímicos, e algo mais, nada irá nos assegurar da recuperação de um psicopata.
    Examinemos outras opções.
    Mantê-lo excluído da sociedade, por medida de segurança, para sempre? _Seria inútil esta lei, ou, melhor dizendo, inviável. Eles são suficientemente espertos para fugirem, principalmente através do suborno de funcionários mais simples, ou matança dos mesmos.
    Isolá-los todos numa ilha distante? _Aconteceria o mesmo que na hipótese anterior. Além do que, em bando, eles comporiam uma força-tarefa invencível.
    Executá-los? _Para o bem da sociedade, sim. No entanto, sempre haveria o risco de um erro judicial. E, 10n culpados não valeriam a vida de um único inocente executado.

    Assim como não sabemos, de início, exatamente o que leva alguém a tornar-se um psicopata desde seu nascedouro, também não sabemos o que propor para o seu fim. Entretanto, existe algo bastante perceptível a todos. Como a Cultura é indispensável para a formação e consolidação do caráter do sociopata, não temos o direito de nos furtar à parcela de responsabilidade com que cada um de nós, cidadão brasileiro, estamos contribuindo para a inscrição dessa obscena tatuagem social, que se esfrega, se esfrega, mas não lava.
    Seja ativamente, humilhando esses seres desviantes, que na sua grande maioria são excluídos da cidadania decente e digna, compromisso de um Estado de Direito, sendo eles alijados, como quando se lança a carga ao mar, para salvar uma embarcação do naufrágio. Se pouco podemos fazer ante os psicopatas primários, com forte carga genética para a impulsividade, a agressividade, a destruição e ao desamor, pelo menos, em relação aos psicopatas secundários, que vão sendo sociopatizados ao longo da vida precoce, na mais absoluta desassistência em todos os níveis, haveria muito por se fazer. Retomo a expressão “humilhando”, pois a nós, que escapamos da exclusão e da desassistência, ostentamos, com o nosso modo de ser, a privação pela qual eles permeiam. E, isto, no mínimo.
    Seja passivamente, ignorando, no ato da omissão, o fato de estarmos todos naquela mesma embarcação que está prestes a submergir. A imagem social é clássica, afunda desde a 1ª. classe dos poderosos e endinheirados, do último andar, até os ratos dos porões, que são muitos. Portanto, diante da psicopatia, se ela já está cristalizada no indivíduo, o prognóstico é péssimo, porém, aos nossos governantes, que estão nesta posição porque se propuseram a sê-los, cabe encontrar uma saída político-administrativa para estes excluídos.
    Quanto àqueles que estão em processo de formação de uma personalidade sociopática, temos nossa obrigação individual, cada qual no seu ofício, de mitigar esta ferida, estancando seu sangramento. A nação brasileira é muito criativa. Os outros povos costumam dizê-lo. E, talvez, seja verdade mesmo. Neste nosso pequeno espaço de papel, o máximo que conseguimos fazer é lançar este apelo. Pois, uma vez excluídos da sociedade como medida de segurança, sua reinclusão, seja na família, no trabalho, na universidade, no clube social e esportivo, será sempre um risco de dolo presumido.
    Se pareço pessimista peço desculpas. Eu até acredito em milagres. Haverá de surgir um Einstein da neurociência que descubra, de início, o que falta àquele cérebro, para que no reaculturamento se recupere a dimensão humana daquele ser, que desgraçadamente desassistimos. A boa ficção científica de Isaac Asimov com suas histórias pioneiras sobre robôs se viu na obrigação de criar leis para estes homens-máquinas. Em 1942 escreveu suas Três Leis da Robótica, que foram publicadas em seu livro I, Robot (Eu, Robô), de 1950, que recentemente chegou às telas (2004), com o mesmo título, e na direção de Alex Proyas: “1ª. Jamais um robô fará mal a um ser humano, nem por omissão; 2ª. O robô sempre obedecerá as ordens de um humano, preservando a 1ª. lei; 3ª. O robô fará de tudo para manter seu bom estado de funcionamento, preservando as duas primeiras leis”. Mais tarde foi acrescentada uma quarta, a “Lei Zero: Um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal, nem permitir que ela própria o faça”. Este algoritmo está inscrito naquilo que se costumou chamar de Circuito Asimoviano. Se este circuito faltar, teremos um robô sem leis (valores), paralelo quase perfeito com o psicopata. Quem sabe nosso Einstein invente um modo de introduzi-los nestes robôs e homens.

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    Nossa Universidade Anhembi Morumbi tem o cuidado de oferecer aos seus alunos um Serviço de Apoio Psicopedagógico (SAP) para prestar assistência quando necessária. Vez por outra sou solicitado a examinar algum universitário. É uma medida higiênico-preventiva louvável da qual me orgulho em fazer parte. Vou narrar, rapidamente, um episódio da nossa experiência no SAP. Fui chamado para ver um aluno, que há pouco, havia dado uma paulada em um colega de classe, na entrada principal da Universidade, Campus Centro. Não foi difícil perceber, em consulta, que se tratava de um paciente em surto (episódio agudo) psicótico. Disse-me ele, que o colega que agredira vinha diariamente dando-lhe, sem que percebesse, remédios que o deixavam sedado, e aproveitava esta situação para violentá-lo sexualmente. Este era o seu delírio. Tinha como agravante o uso esporádico de maconha, que, evidentemente, facilitava o desencadeamento de novos surtos. Imediatamente convocamos sua família e lhe demos uma suspensão para tratamento psiquiátrico intensivo em regime hospitalar. Está claro, que este é um caso de doença mental, e não de um psicopata. Cerca de um mês depois, este estudante volta, acompanhado com sua família, que reivindicava sua rematrícula no curso que fazia. Novamente fui solicitado a intervir, desta vez como psiquiatra-forense. Evidentemente que eu não poderia autorizar esta reivindicação. Apesar de ser uma doença mental, que poderia ser tratada química e psicologicamente, mantendo-o em estado inter-crítico de relativa normalidade, ficou evidente que: 1º. sua família não tinha pulso e habilidade de controlá-lo para que fosse medicado adequadamente; 2º. tampouco, de convencê-lo a freqüentar um serviço especializado para fazer o seu acompanhamento, e, finalmente, 3º. não haveria como monitorá-lo na questão da drogadição.
    Pensando na minha responsabilidade em proteger nossa comunidade universitária resolvi, em documento oficial, que só aceitaria sua rematrícula por Ordem Judicial. Como era de se esperar, a família acabou desistindo de pressionar-nos, e retirou da Secretaria os documentos escolares do aluno. Como vê, meu caro leitor, nem neste caso, que seria medicamente equacionável, foi possível a sua reinclusão em nosso meio social. Que dirá de um psicopata? Nessa mesma ocasião, coincidentemente, o Diretor da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, meu amigo pessoal, tomou a mesma atitude que eu tomara, para a rematrícula daquele paciente universitário de Medicina, também doente mental, que de posse de uma submetralhadora cometeu homicídio múltiplo num cinema de São Paulo. O MM. Juiz Corregedor do Estado negou-lhe a rematrícula.

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    Quero chamar a atenção do meu leitor que não estou me referindo aos casuísmos contemporâneos sócio-econômico-políticos de exclusão/inclusão, mas de algo atávico, de profundas raízes históricas no tempo, que levou o escritor humanista alemão Sebastian Brant, em 1494, a publicar seu livro alegórico “Nau dos Insensatos” (Das Narrenschiff). Nesse texto todos os loucos da Terra embarcam nesta nau rumando para a “Bobagônia”, o Reino da Loucura, e Brant critica a loucura de querer se fazer previsões sobre os destinos do homem. Esta grande embarcação era um depósito não só de loucos, mas criminosos, vagabundos, prostitutas, tudo enfim, que fosse indesejável à sociedade. Ela ficaria à deriva nos mares, proibida de atracar em qualquer porto do planeta.
    Portanto, nada mudou? _Talvez sim, em termos de tecnologia. Hoje alguém escreveria sobre uma grande astronave levando milhares de indesejáveis, humanos e subumanos, a povoar algum astro do firmamento.

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    Pensando em termos de Humanidade e seu futuro, talvez, a Seleção Natural da Evolução Biológica seja a grande esperança de poder exterminá-los na fonte. Pode parecer curioso este pensamento, pois, à primeira vista, o psicopata teria a chance de sempre se sair melhor na competição com aqueles que têm sentimento, devido à catatimia. Entretanto, no acompanhamento de indivíduos com baixa inteligência emocional, apesar de um intelecto intacto, constata-se que acabam por tomar as piores decisões em suas vidas. Falta-lhes o feeling necessário para as prospecções de maior êxito, levando-os ao seu extermínio genético(13). Ainda mais, continuemos tomando como ponto de referência a Evolução Biológica para visualizarmos a relação entre a conduta do indivíduo e seu reflexo na espécie e no meio ambiente. Uma espécie como a nossa que está no pico da evolução zoológica, só poderá sobreviver à ação da Seleção Natural se houver co-laboração (trabalho em conjunto) entre seus indivíduos(14).
    O psicopata sem sentimento só desagrega, só destrói, impossibilitando o bom êxito colaborativo de sua espécie. Como já dissemos, ele será eliminado pela Seleção Natural, levando muitos consigo. Sua conduta será sempre o resultado final de sua contingência biopsicossocial(15). Assim, somos levados a pensar, que num grau mais elevado de Evolução, os psicopatas estarão em extinção, e esperar que o ser humano, bom por natureza e pelo ambiente que cria, esteja em franca proliferação. Efetivamente, estamos muito longe de atingir este nível evolutivo. Portanto, ser psicopata vai contra o Projeto Humanidade, que ele mesmo criou.

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    Todo indivíduo cruel é necessariamente portador de alguma anomalia de personalidade ou transtorno mental? _Não.
    Partimos do pressuposto que o Mal tem substância própria, tem identidade definida, e não seja apenas a ausência do Bem. Na bipolaridade Mal-Bem, admitimos um continuum, como uma linha reta, que passando pelo ponto mediano, o 0 da escala, marcaria um tipo humano indiferente ou apático, nem bom nem mau.
    Existem indivíduos apenas “normóticos”, como todos nós, sem nenhum diagnóstico psiquiátrico, que têm sentimentos, e, portanto, escala de Valores – distinguem o Bem e o Mal, e que, mesmo assim, são molestos à sociedade. O injustiçado pensador Erich Fromm (1973) escreve: “Todavia, mesmo que uma compreensão melhor dos vários exemplos do comportamento (humano) destrutivo e cruel reduzisse a incidência da destrutividade e da crueldade como motivações psíquicas (de várias ordens de fanatismo), permanece o fato de que um número bastante alto de exemplos ainda fica para sugerir que o homem, em virtual contraste com todos os mamíferos, é o único primata que pode sentir intenso prazer no ato de torturar e matar” (p. 248).
    Matricídio, parricídio, filicídio, fratricídio, uxoricídio, são palavras que aparecem com extraordinária freqüência nos autos dos processos criminais dos psicopatas de qualquer lugar. A História Universal e as Escrituras do Monoteísmo são pródigas nestes exemplos. William Shakespeare – seja lá quem ele tenha sido de fato – foi absolutamente genial. Em uma de suas tragédias, diz em determinado trecho: “Eles eram mais do que inimigos, eles eram irmãos”.
    Esta questão levanta uma misteriosa complexidade: O ser humano é bom por natureza? Ou, é mau por natureza?
    _Em se falando de Natureza, podemos aplicar o método explicativo científico-natural. Se o homem dependesse somente de sua biologia, como os animais não-humanos que estão geneticamente programados a obedecerem os algoritmos de seus instintos, não caberia fazer-se um juízo de Valor quanto ao seu comportamento. Não dizemos que a Natureza é boa ou má, porque produz tornados e terremotos, ou chuva e sol para as plantações.
    Um Homo sapiens sapiens, que atingiu o grau máximo de sua humanidade (nem todos o conseguem) possui autoconsciência e consciência crítico-reflexiva interagindo com sua afetividade. Sua razão permite-lhe escapar dos comandos instintivos, mantendo-os sob controle. Seu cérebro cognitivo coexiste em harmonia com seu cérebro emocional (sistema límbico)(16). Assim, nossa conduta ganha em liberdade, e por ela teremos de responder eticamente.
    O desafiante filósofo australiano Peter Singer (1998), cita o eticista Joseph Fletcher, que propõe um curioso sistema de “indicadores de humanidade”, dentre os quais, escolhemos: 1. consciência de si mesmo; 2. autocontrole; 3. senso histórico, de passado e futuro; 4. capacidade de relacionar-se com os outros; 5. cuidado com os outros; 6. capacidade de comunicação através da linguagem; 7. curiosidade espontânea (p. 96). Singer apresentou esta lista de Fletcher numa tentativa de distinguir o animal humano do não-humano. Na Grécia Antiga, bastava dar a definição aristotélica: “O Homem é um animal racional”! Com Kant a frase teve uma mudança: “O Homem é um animal que nasce com a possibilidade de ser, um dia, racional”!
    Do ponto de vista psicossocial, encontramos sobejamente a maldade radical nos seres humanos, mesmo não sendo portador de nenhum transtorno psicofísico. A lei reconhece este fato, e diante de um criminoso consciente e responsável irá imputar-lhe uma pena integral, que o manterá preso em Penitenciária comum. A psicanálise costuma identificar estes seres como sádicos.

    * * *

    Vejo-me obrigado a terceirizar o desfecho que procurava para essas minhas idéias. Valho-me do filósofo Denis Rosenfield (1988) que, com brilhantismo, assevera: “O homem é um esboço inacabado, talvez para sempre incompleto” (p. 150).

    * * *

    Apêndice: O alerta ao meu perseverante leitor não estaria completo se focalizasse somente as PPs sem sentimento. Posso, devo e quero chamar a atenção para mais um tipo de Personalidade Psicopática. Dentre os dez tipos fenomenologicamente descritos pelo mestre da Universidade de Heidelberg, o Professor Kurt Schneider, existe aquela que carrega consigo uma bomba megatônica junto ao seu corpo sagrado. São os fanáticos. Cuidado, meu amigo, seu vizinho, que acabou de converter-se a uma dessas seitas recém-fundada numa garagem vazia da vizinhança, que apesar de todas as suas insuficiências conseguem fazer uma lavagem cerebral em “fiéis” mais insuficientes ainda. Se um destes tiver algum desafeto por você, dirá a todos que o Demônio o possuiu.
    O objeto do fanatismo poderá ser algo inofensivo como o vegetarianismo, a liga protetora dos animais (não-humanos), mas, se a ideologia contiver elementos étnicos, religiosos, sócio-políticos, sócio-econômicos, ou até mesmo, se for de torcidas organizadas de futebol (pelo menos em terra tupiniquim), a cena final poderá ser sangrenta. Os fatos mostram isto com fartura. Curioso é que o fanático tem sentimentos, sua dinâmica psíquica, antes de abraçar a “causa”, é igual à dos normóticos. Sem dúvida, aos pré-dispostos, não podemos subestimar a ação do brain-wash executada pelos psicopatas primários, que são os pontas-de-lança nestes movimentos todos. São notórios em nossa terra os líderes de seitas religiosas, que se enriquecem às custas da miséria do Outro. Talvez o fanático não nos mate pessoalmente, mas converterá um pelotão de fiéis homens-bomba para fazê-lo. A este propósito, recomendamos o correto filme, onde a ficção, para nosso entretenimento, reproduz a realidade com fina precisão. Trata-se de “O suspeito da Rua Arlington” (Arlington Road), lançado em 1999, sob a direção também correta de Mark Pellington. Tim Robbins encarna um terrorista/PP fanático, que preenche todos os requisitos de Schneider.
    Penso que uma PP fanática esteja muito mais próxima da psicose – do delírio – do que uma sem sentimento.
    Um lembrete: a PP sem sentimento não precisa de ideologias para agir.

    * * *

    1ª. Observação: Talvez seja uma preocupação tola de minha parte, mas presumo que muitos de nossos leitores tenham visto nas livrarias, ao menos, o impactante título “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão” (tradução fiel do título original francês), e por falta de estômago, tenho de reconhecer, não o tenham lido. Assim sendo, quero registrar dois itens:
    1º. O grande valor deste caso criminal, ocorrido em 1835, é o de ser histórico na Medicina Legal. Ele, praticamente, inaugura a contribuição oficial da Psiquiatria Clínica para com a Justiça. Este crime foi cuidadosamente revisto por uma equipe do Collège de France, coordenada pelo filósofo Michel Foucault (1977).
    2º. Aqui está o meu zelo: com o pré-julgamento. Apesar da morfologia violenta do delito, Pierre Rivière não era um psicopata, mas, sim, um gravíssimo psicótico. Relendo as observações clínicas de Pierre, realizadas por um dos pioneiros da Psiquiatria Francesa, Esquirol, chego à conclusão de ter-se tratado de um encefalopata lato senso (seguramente nossas neuroimagens atuais mostrariam lesões anatômicas naquele encéfalo). Nestes casos, é freqüente confundi-los com psicopatas, e, por isso mesmo, chegam a ser chamados de Pseudo-Personalidades Psicopáticas (PPP).
    2ª. Observação: As afirmações que faço nesse texto correm, evidentemente, sob minha inteira responsabilidade.

    //////////////////////////////////////////////////

    Notas

    (1) O que significa que não basta os cachorros de Pavlov salivarem ao ouvir uma campainha para que nossa complexa personalidade siga os mesmos princípios.
    (2) A tradição da Escola Alemã de Psiquiatria foi seguida, revista e ampliada pelos psiquiatras espanhóis; é nesta Escola que fizemos nossa formação.
    (3) Os demais nove tipos de Personalidades Psicopáticas são: hipertímicos, depressivos, inseguros de si mesmo, fanáticos, ostentativos, lábeis de humor, explosivos, abúlicos e astênicos (segundo o Prof. Kurt Schneider).
    (4) De fácil identificação, estou me referindo ao Dr. Bacamarte, protagonista do lúcido conto do mestre da Literatura Universal, Machado de Assis, “O Alienista” (São Paulo: Editora Saraiva, 1957).
    (5) Segundo Richard Dawkins, meme é o equivalente de gene. Este está para a Hereditariedade, assim como aquele está para a Cultura. Recomendamos a indispensável leitura de seu livro “O gene egoísta”. São Paulo: EDUSP, 1979.
    (6) Em língua inglesa tornou-se conhecida a expressão nature/nurture (inato/adquirido), cunhada por Francis Galton no século XIX, parafraseando Shakespeare em sua obra The tempest, referindo-se, nela, aos elementos que compõem a personalidade.
    (7) Há um capítulo intitulado “Biologicamente cultural” de Bussab & Ribeiro, que desenvolve este pensamento com muita propriedade, em “Psicologia: Reflexões impertinentes” de Souza & cols. São Paulo: Casa do Psicólogo, pp. 175-193, 1998.
    (8) O psicopata é um amoral. O transgressor comum, que distingue a vivência do bem e do mal, é um imoral.
    (9) Vivência é um neologismo castelhano, há muito proposto pelo filósofo Don José Ortega y Gasset, que foi adotada em nossa língua, e significa experiência vivida subjetivamente. Vivência corresponde ao Erlebnis, do alemão, sem correspondência neolatina.
    (10) A Adranghetá é a poderosa máfia da Calábria que, segundo a Polícia italiana, superou em força, e dimensões, a Cosa Nostra da Sicília. A Adranghetá, recentemente, comprou “um bairro inteiro” em Bruxelas, capital da Bélgica, com dinheiro reciclado proveniente do narcotráfico. A Camorra de Nápoles também tem grande poder em sua região.
    (11) O tédio é uma figura trazida pelos autores da Filosofia Existencial. Ele não é um sintoma afetivo, mas uma condição humana ante o absurdo da vida na qual somos todos lançados. Portanto, a PP sem sentimento não é imune a ele. Contra o tédio nenhum psicofármaco traz resultado. Tampouco as psicoterapias, que no enfrentamento do tédio acabam resvalando em algum tipo de religiosidade, numa atitude final de desespero do terapeuta. Recomendamos a leitura atenta do livro de Martin Heidegger, “Seminários de Zollikon”, editado pelo psiquiatra e analista ex

  8. wanderlucy disse:

    Arrasou, Adalberto! Obrigada pela oportunidade de ler este seu texto.
    Uma pergunta: algumas sociedades produzem mais psicopatas do que outras?

  9. Pingback: De Mattar » Paulo Freire e a EaD

  10. João Mattar disse:

    A Virginia Tech lançou um site para coletar, preservar e apresentar as história e os registros digitais da tragédia de 16 de Abril de 2007.
    O site é administrador por alunos, professores e funcionários.
    http://www.april16archive.org/

  11. Hipocrisia e opinioes disse:

    È triste e lamentavel pessoas inocentes serem vitimados assim, mas se os xenofobos racistas nazistas que oprime certos grupos semeando sofrimento forem punidos assim? qual seria a reaçao da sociedade? Tem muitas coisas nos EUA, onze de setembro foi autoria dos muçumanos? John Kennedy foi assassinado por um russo? falta esclarecimentos, EUA misterioso!

  12. Pingback: Kat Von D Picture

  13. João Mattar disse:

    Nestas últimas semanas tivemos vários outros ataques nos Estados Unidos.

  14. Pingback: De Mattar » Blog Archive » EDUCAUSE Quarterly Magazine, Volume 31, Number 3, 2008

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