Investimentos & EaD

Um artigo recente na Folha Online, Grupos apostam em aquisições e cursos a distância, analisa brevemente a situação do mercado de educação no Brasil.

Os grandes grupos preparam-se para um forte crescimento da EaD. Grupos estrangeiros têm investido na educação brasileira e temos assistido a vários casos de abertura de capital.

São mencionados no artigo a UNIP, a Estácio, o Grupo Anhangüera (que recentemente comprou a UNIDERP), a COC e a Faculdade Pitágoras.

Aí tem uma passagem muito interessante no artigo, que reproduzo a seguir (três parágrafos):

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“O ensino a distância permite, após forte investimento inicial, oferta de muitas vagas com baixo custo, pois não é preciso manter muitas salas, por exemplo. De acordo com o consultor Carlos Monteiro, algumas instituições poderão oferecer cursos a R$ 50.

Mas, para isso, terão de massificar o ensino, oferecendo o mesmo ‘pacote’ para diversas regiões do país. ‘Isso pode desagradar os alunos’, diz.

‘De fato, será possível oferecer cursos a R$ 50. Mas qual será a qualidade?’, questiona o presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância, Fredric Litto. Ele diz que, para baixar tanto, provavelmente as instituições não contarão com materiais didáticos e professores (tutores) de boa qualidade.”

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Essa passagem merece uma boa reflexão. O modelo do ‘após forte investimento inicial’ nós já conhecemos bem: é o modelo da EaD focada no conteúdo, que acredita que a função da EaD é simplesmente produzir alguma coisa e e então distribuir essa coisa – depositar (da maneira mais barata possível) na cabeça dos alunos. Não é o único, nem o mais adequado.

Mas aí alguém pode dizer: bom João, você com seu idealismo! Temos um sério problema de educação no país, muita gente precisa (e quer) ser educada mas não tem dinheiro para pagar, então a EaD pode ser a salvação, porque oferece a mesma coisa a custo mais baixo. Mas que mesma coisa? Dependendo do modelo adotado, talvez não ofereça muita coisa. Mas nem do ponto de vista financeiro, administrativo (deixando de lado qualquer preocupação pedagógica), esse modelo do ‘após forte investimento inicial’ me parece o mais adequado – ou seja, é possível, com outros modelos, alcançar até mais lucro, agradar a todos os stakeholders da educação etc. Discuti bastante isso nos meus 2 últimos livros.

Além disso, ‘após forte investimento inicial’ não tem relação direta com ‘não é preciso manter muitas salas’. Em alguns modelos de EaD, não é preciso manter salas mesmo (mas isso não vale para todos), mas o fato de manter ou não manter salas não depende do investimento inicial: alguns modelos de EaD exigem mais investimento inicial (os modelos que poderíamos chamar de conteudistas), outros não (como o do aututor), mas a relação com as salas é outra coisa.

Massificar o ensino é o que muita gente tem feito, não apenas em EaD. E o Carlos Monteiro toca em um ponto interessante: “mesmo ‘pacote’ para diversas regiões do país” – este é exatamente o modelo de EaD de massa, o fordismo, de que tanto fala o Otto Peters – produzir um produto (supostamente o conteúdo da educação) e distribuí-lo para o máximo de gente possível. E a questão aqui não é desagradar o aluno: é que a coisa não funciona, nem conceitualmente. Esses modelos estão condenados não por insucesso financeiro (pois podem até ter sucesso no início), mas porque teoricamente, como planejamento de negócios, estão completamente furados. Eles estão baseados numa lógica da administração da época de Ford, do início do século passado (e este blog praticamente começou com o post Ford e a EaD, um dos mais lidos até hoje). Estão tentando aplicar à educação uma teoria e uma prática de 100 anos atrás, que já não funciona mais na administração porque hoje se pensa em flexibilidade, em cooperação, em serviços voltados para o cliente etc. São modelos que querem implantar o carrinho revolucionário do Ford na educação, mas 100 anos depois. E educação não é a mesma coisa que construir carros. Contra esses modelos, não apenas os alunos, mas os professores, o governo e toda a sociedade têm que brigar tremendamente, porque não são do interesse de ninguém, apenas de um pequeno grupo de investidores privados.

Por isso me parece que a questão da EaD não é uma questão qualquer, marginal, na educação: ela deve ser encarada politicamente, não pode ser apenas dinheiro, mais um negócio qualquer na roda vida.

Por fim, o professor Litto afirma que o custo baixo dessa EaD provavelmente estará associado à baixa qualidade de materiais didáticos e professores (tutores). Aqui me parece também que é necessária uma boa distinção.

Um modelo conteudista-capitalista de EaD pensa a maximização do lucro em função da utilização de um material fixo por um máximo de usuários. Mas o custo para produzir material não é tão elevado, mesmo material multimídia, vídeos etc. podem ser produzidos hoje por um custo bastante razoável. A questão principal não é essa, mas que o ‘material’ (com mais ou menos qualidade) fica ultrapassado muitas vezes antes de nascer, de que qualidade em educação não se obtém pela simples exposição do aluno a um material, de que não é obrigatório com a EaD que o material esteja pronto e enlatado, antes do curso começar, de que mesmo a noção de material em EaD pode ser questionada (modelos construtivistas trabalham mais com a noção de atividades, projetos dos próprios alunos) etc. Ou seja, o problema principal da EaD não está na qualidade do material didático, mesmo porque há material didático de muito boa qualidade de graça pela Net, para muitos cursos.

Agora, do outro lado, esses modelos não terão mesmo professores (tutores) de qualidade, não porque utilizarão professores menos qualificados, não os treinarão adequadamente, colocarão um número abusivo de alunos por turma, pagarão um salário abusivo (porque a questão salarial em EaD ainda é um tema não-resolvido, não-negociado) etc., mas simplesmente porque, no limite, o ideal desses modelos é que não haja professor (porque aí sim fica barato), que o próprio conteúdo seja o curso, que o aluno estude sozinho, quando e onde quiser, como se esse fosse o ideal de nobreza da EaD!

Mas o artigo ainda procura ser didático e, no final, em 5 curtíssimos parágrafos, consegue explicar “como funciona” a EaD. Vamos ver, por partes:

“A educação a distância é uma opção para quem não tem horário fixo para assistir às aulas ou não mora onde o curso é oferecido.”

Esse pode ser um público da EaD, mas não é o único. A EaD pode ser utilizada com muitíssimo sucesso como complemento de aulas presenciais, mesmo para alunos que possam assistir aulas em um horário fixo e morem no local em que estudem. A EaD permite também que alguém que possa estudar em horário fixo, e que more onde possa estudar (ou inclusive onde estude efetivamente), possa fazer um curso de seu interesse em outro lugar – como estou fazendo na Boise State University – a figura do “aluno universal”, da qual já falo desde o final da década de 90, no meu Metodologia Científica na Era da Informática. A EaD tem sido também cada vez mais utilizada no ambiente corporativo. E assim por diante. Ou seja, não tem sentido identificar a EaD apenas com quem supostamente não pode estudar num lugar fixo ou horário específico – o potencial da EaD para revolucionar a educação é muito maior.

O artigo continua:

“Ao professor (chamado de tutor) cabe o papel de orientar e tirar dúvidas.”

Ora, quem está seriamente envolvido com EaD sabe que o papel do tutor não é apenas de orientar e tirar dúvidas. Em alguns modelos o tutor atua menos (até sua morte no limite ideal para os modelos que só pensam em ganhar dinheiro), mas em outros atua intensamente, não apenas orientando e tirando dúvidas, mas produzindo e reciclando material, organizando atividades em função das turmas, animando a inteligência coletiva etc. etc. Não se pode pretender explicar o que é EaD falando apenas de um modelo, que (volto a repetir) não é o único, nem o mais adequado pedagogicamente, nem o melhor financeiramente etc.

Ufa!

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Uma resposta a Investimentos & EaD

  1. Alice Brandão disse:

    Olá De Matar!

    Muito oportuno seu texto. Oportuniza a reflexão sobre uma EaD para a contemporaneidade e não como há cem anos passados. Coordeno um Pólo de apoio presencial às Universidades públicas e estou de olho na atuação dos tutores presenciais e a distância. Tenho receio e preocupação com a fragmentação e as consequências disso para o aluno. No Brasil, a EaD ainda é mal compreendida pelos usuários e pelos ofertantes. Precisa de contribuições como as suas observações. Parabéns! Alice

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