DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Trad. Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. Resenha de João Mattar.
O clássico livrinho começa com um Prefácio de Pierre Vidal-Naquet.
Capítulo 1. Verdade e Sociedade.
Antes do surgimento da filosofia na Grécia Antiga, verdade (alétheia) tinha um sentido diferente do que tem para nós, hoje. A proposta de Detienne é traçar a pré-história do conceito de verdade, explorando seu significado pré-racional.
Capítulo 2. A Memória do Poeta.
Alétheia, na Grécia Arcaica, tem um sentido mágico-religioso e está ligada às musas (filhas de Mnemosýne), à memória, à adivinhação, à poesia, aos mitos, aos reis e aos deuses. As musas dizem a verdade, as palavras da memória; os poetas são adivinhos-profetas, mestres da verdade. Detienne explora o campo da oposição alétheia/léthe: louvor (Epainos)/censura (Momos), palavra/silêncio, luz/obscuridade, memória/esquecimento.
“Funcionário da soberania ou louvador da nobreza guerreira, o poeta é sempre um ‘Mestre da Verdade’. Sua ‘Verdade’ é uma ‘Verdade’ fundamental, diferente da nossa concepção tradicional, Alétheia não é a concordância da proposição e de seu objeto, nem a concordância de um juízo com os outros juízos; ela não se opõe à ‘mentira’; não há o ‘verdadeiro’ frente ao ‘falso’. A única oposição significativa é a de Alétheia e de Léthe. Nesse nível de pensamento, se o poeta está verdadeiramente inspirado, se seu verbo se funda sobre um dos de vidência, sua palavra tende a se identificar com a ‘Verdade’.” (p. 23)
Capítulo 3. O Ancião do Mar.
Detienne analisa como, no caso da figura de Nereu, alétheia está ligada a um saber oracular (mântico), à religião, à justiça, aos reis e à política. Assim como o poeta e o adivinho, o rei de justiça é “Mestre da Verdade”:
“No pensamento arcaico, três domínios fazem-se distinguir: poesia, mântica e justiça, que correspondem a três funções sociais, nas quais a palavra desempenhou um papel importante antes que se tornasse uma realidade autônoma, antes de ser elaborada, antes de ser elaborada pela filosofia e pela sofística, uma problemática da linguagem.” (p. 32).
Capítulo 4. A Ambiguidade da Palavra.
A palavra mágico-religiosa se mistura com os gestos e com o corpo: “A palavra oracular não é o reflexo de um acontecimento pré-formado, é um dos elementos de sua realização.” (p. 35). Ela não se distingue da ação e transcende o tempo e os homens. Nesse sentido, Alétheia é inseparável da Díke (Justiça). Detienne mostra como não existe exatamente oposição entre Alétheia e Léthes, mas esses contrários são complementares, e explora sua articulação com Apáte, Pístis e Peithó.
“Se procuramos formular a problemática imanente, de algum modo, a uma concepção da palavra em que a ambiguidade é um caráter fundamental, podemos dizer que a ambiguidade da palavra é o ponto de partida de uma reflexão sobre a linguagem como instrumento que o pensamento racional desenvolverá em duas direções diferentes: por um lado, o problema da potência da palavra sobre a realidade, questão essencial para toda a primeira reflexão filosófica; por outro lado, a potência da palavra sobre o outro, perspectiva fundamental para o pensamento retórico e sofístico. Alétheia situa-se, portanto, no coração de toda a problemática da palavra na Grécia arcaica: as duas grandes potências vão se definir em relação a ela, seja rejeitando-a, seja fazendo dela um valor essencial.” (p. 44).
Capítulo 5. O Processo de Laicização.
Além da palavra mágico-religiosa, pode-se observar também na Grécia arcaica a palavra-diálogo, relacionada com as guerras e os guerreiros. Ao contrário da palavra mágico-religiosa, essa palavra-diálogo é laicizada, está no campo dos homens e aponta para a isonomia, a igualdade a semelhança: “A palavra não é mais, nesse momento, o privilégio de um homem excepcional, dotado de poderes religiosos. As assembleias são abertas aos guerreiros, a todos aqueles que exercem plenamente o ofícios das armas.” (p. 50).
Detienne explora então a importância do centro (méson), ponto comum aos homens organizados em círculo, que aponta para as noções de publicidade e comunidade: “No jogo das diversas instituições, assembleias deliberativas, partilha do butim, jogos funerários, um mesmo modelo espacial se impõe: um espaço circular e centrado onde, idealmente, cada um está, relativamente aos outros, numa relação recíproca e reversível.” (p. 49). Os bens depositados nesse ponto central são coisas comuns, e as palavras pronunciadas dizem respeito aos interesses comuns. “Ponto comum, o méson é, por isso mesmo, o lugar público por excelência: por sua posição geográfica, é sinônimo de publicidade.” (p. 50). O centro é ao mesmo tempo o que está submetido ao olhar de todos e o que pertence a todos em comum. Assim, os grupos de guerreiros podem ser considerados precursores da cidade, num plano pré-político.
Detienne defende então que a passagem do mito à razão não se resume a um milagre (J. Burnet) ou a uma decantação progressiva de um pensamento mítico a uma conceitualização filosófica (F. M. Cornford), mas “é nas práticas institucionais de tipo político e jurídico que se opera, durante os séculos VI e VII a.C., um processo de secularização das formas do pensamento. É na vida social que se constroem, ao mesmo tempo, o quadro conceitual e as técnicas mentais que favorecem o advento do pensamento racional.” (p. 53-54). Nessa relação entre o social e o mental, o deterioramento da palavra mágico-religiosa e a laicização da palavra efetuam-se, portanto, em diferentes níveis: retórica, filosofia, história e direito, que supera os procedimentos ordálicos a passa a envolver o diálogo: “A eficácia mágico-religiosa converteu-se em ratificação do grupo social. É o ato de óbito da palavra mágico-religiosa.” (p. 54).
A palavra-diálogo supera, assim, a palavra mágico-religiosa: “Uma reflexão sobre a linguagem elabora-se em duas grandes direções: por um lado, sobre o lógos como instrumento das relações sociais; por outro, sobre o lógos como meio de reconhecimento do real. A Retórica e a Sofística exploram a primeira via forjando técnicas de persuasão, desenvolvendo a análise gramatical e estilística do novo instrumento. A outra via é o objeto de uma parte da reflexão filosófica: a palavra é o real, todo o real? Tal problema se faz urgente, na medida em que o desenvolvimento do pensamento matemático faz nascer a ideia de que o real é igualmente expresso por números.” (p. 55).
Capítulo 6. A Escolha: Alétheia ou Apáte.
Inicialmente, Detienne analisa o pensamento e a obra de Simônides de Céos, que cobra por sua poesia e rejeita a noção de poeta inspirado, colocando-se do lado da Apáte. Com suas mnemotécnicas, é possível assistir ao processo de secularização da memória, que deixa de ser uma forma de conhecimento privilegiado, enquanto a escrita torna-se um instrumento de publicidade.
“Praticar a poesia como um ofício, definir a arte poética como uma obra de ilusão, fazer da memória uma técnica secularizada, rejeitar a Alétheia como valor cardinal, são estes os muitos aspectos de uma mesma empresa. Neste plano, percebe-se também a ligação necessária entre a secularização da memória e o declínio de Alétheia. Privada de seu fundamento, a Alétheia é brutalmente desvalorizada; Simônides rechaça-a, considerando-a como símbolo da antiga poética. Em seu lugar, reivindica a doxa.” (p. 58).
A doxa se opõe à alétheia, com afinidades com Apáte e com a ambiguidade, e como termo técnico-político, mais do que religioso. Canta também os homens, não apenas os deuses. Nesse sentido, prefigura os sofistas, que como os políticos exploram o mundo da ambiguidade, assim como a retórica, enquanto a filosofia escolhe o mundo da episteme. O fim da sofística, assim como da retórica, é a persuasão (Peithó) e o engano (Apáte). Observa-se, assim, ao rompimento da alétheia com a memória, a secularização da memória e a desvalorização da alétheia.
Detienne explora também as seitas filosófico-religiosas como p.ex. os pitagóricos, que fazem uma escolha distinta dos sofistas. Ao mesmo tempo em que se percebe uma ligação dessas seitas com o pensamento religioso anterior, alétheia/lethe são agora representados como contraditórios, não mais como complementares. Os contrários não são mais complementares e oposições ambíguas, mas o universo agora dualista está estruturado com oposições nítidas. Ou seja, observamos a passagem da lógica da ambiguidade para a lógica da contradição. Alétheia é agora visto de maneira diferente, mais abstrata e identificada com o ser. O mago, por sua vez, é visto como separado dos outros homens, mais perto da alétheia e distante da apáte.
Uma transição subsequente ocorrerá do mago ao filósofo do ser. A palavra é agora realidade. Detienne refere-se então ao poema de Parmênides. Enquanto o mago estava à parte da cidade, o filósofo encontra-se determinado por ela: sua verdade deve ser submetida à confrontação e à verificação. Transformou-se então em uma verdade objetiva.
Capítulo 7. Ambiguidade e Contradição. É a conclusão do livro, com 2 páginas.
“Ainda que, por determinados aspectos próprios, Alétheia seja, no seio do pensamento racional, um dos termos que marca mais claramente uma certa linha de continuidade entre a religião e a filosofia, ela é também, no seio do mesmo pensamento, o signo mais específico da ruptura fundamental que separa o pensamento racional do pensamento religioso. Em toda uma série de planos de pensamento religioso, Alétheia mantém com outras potências relações necessárias que determinam a natureza de sua significações. A mais fundamental destas relações é a solidariedade que une Alétheia a Léthe em um casal de contrários antitéticos e complementares. Todos estes planos de pensamento são marcados pela ambiguidade, pelo jogo do verídico e do enganoso. A ‘verdade’ se colore de engano, o verdadeiro não nega jamais o falso. É a contradição, ao contrário, que organiza o plano de pensamento das seitas filosófico-religiosas; no mundo dicotômico dos magos, o ‘verídico’ exclui o enganoso. Com Parmênides, Alétheia se confunde até mesmo com a exigência imperiosa da não-contradição. É, portanto, na Alétheia que se mede melhor a distância entre dois sistemas de pensamento, dos quais um obedece a uma lógica da ambiguidade, e o outro, a uma lógica da contradição.” (p. 73-74).
Notas (que ocupam mais de 60 páginas!) e um Índice Analítico e Onomástico encerram o fascinante livrinho!