[photopress:LI0263_1.JPG,thumb,vazio]
Ouvi recentemente o Diretor de um Departamento de EaD dizer mais ou menos o seguinte: os americanos não compreendem o conceito de turma em educação a distância. Eles sempre me perguntam: mas por que vocês precisam trabalhar com essa idéia de turma em EaD? Qual o sentido disso?
Segundo esse mesmo Diretor, o conceito de turma em EaD seria uma criação dos latinos, esse povo que precisa estar próximo, que é mais sensual, que gosta de cerveja, futebol, mulher e carnaval (essa metáfora foi usada por ele). O espírito latino teria inventado o conceito de turma em EaD, e por isso os americanos não o compreenderiam.
Essa grande “descoberta”, provavelmente, serviu como fundamento pedagógico para que esse Diretor implementasse um Projeto de EaD em que não há limite no número de alunos por turma: podem ser 100, podem ser 200, podem ser 300, podem ser 400… E o programa foi implementado no Brasil, traindo o espírito latino e obedecendo ao espírito norte-americano.
A avaliação parece-me completamente equivocada.
Em primeiro lugar, o conceito de turma em EaD não é uma invenção latina. Qualquer pesquisa rápida na bibliografia técnica sobre educação a distância mostra que isso não é verdade: existem turmas em EaD pelo mundo todo, desde os Estados Unidos até a Austrália, na Ásia e na Europa. Nem mesmo Skinner, Piaget ou Vygotsky diziam isso!
Mas existem, também, Projetos de EaD que não utilizam a noção de turma. Quais são as diferenças, então?
Eu já cursei mais de uma disciplina na Universidade de Berkeley, quando a internet já era intensamente utilizada como mídia em EaD. A coisa funcionava assim: eu me matriculo, recebo pelo correio o material (que inclui apostila, livros, vídeos, CDs etc.), estudo sozinho, mando as atividades para o meu professor (na época, por correio), ele corrige, me devolve, e, até o final do prazo para conclusão do curso, tenho que fazer uma prova presencial. Ou seja, eu não interajo com aluno nenhum, não conheço nenhum aluno, estudo independentemente e individualmente, solitariamente. Os prós e contras desse método podem ser questionados, mas, de qualquer maneira, neste caso, não existe realmente o conceito de turma. Não existe nem mesmo a idéia de que o curso tenha que começar em determinada data e terminar em outra, nem que as atividades tenham que ser entregues em datas específicas: o aluno se matricula no curso quando desejar, segue o ritmo de estudos que quiser, e o professor é remunerado pelo número de alunos que estão cursando a disciplina, afinal de contas seu trabalho é simplesmente corrigir as atividades individuais dos alunos, dar uma nota e devolvê-las para eles. E, no final, corrigir uma prova. Ou seja, quanto mais alunos, proporcionalmente mais trabalho, e portanto maior a remuneração.
Ora, mas esse não é o único modelo de educação a distância que existe nos Estados Unidos, que justifique eles acharem que o conceito de turma em EaD é uma invenção latina. Existem sim cursos a distância, nos Estados Unidos e nos outros cantos do mundo, que se utilizam de turmas. O que ocorre, nesses casos? Além da possibilidade de propor também atividades individuais, são propostas uma série de atividades interativas, como fóruns, chats, trabalhos em grupo etc. Aqui, o conceito de turma faz todo o sentido: as aulas precisam começar no mesmo momento, têm um prazo específico de duração, muitas vezes há datas específicas para a entrega das atividades, o professor funciona como um facilitador do aprendizado e um animador das atividades interativas, e sua remuneração é, quase sempre, vinculada ao número de turmas, não ao número de alunos.
Boa parte dos estudiosos de EaD defende a maior eficácia dos projetos que privilegiam as atividades interativas entre os alunos, o que não foi a opção do nosso Diretor, mas isso não vem ao caso, não importa para a nossa discussão.
A questão é que o nosso Diretor de EaD implementou seu Projeto sem conceber com clareza essas diferenças, e, como você imagina, deu pau! Não ficou nem latino nem americano, ficou talvez um casal de gringos tomando caipirinha no Rio, ninguém sabe ainda ao certo se ficou alguma coisa.
As “turmas” (que não deveriam mais ser turmas, porque não queremos mais ser latinos!) têm 100, 200, 300, 400.. alunos, com a programação de algumas atividades individuais, mas também algumas atividades interativas, como a criação de fóruns. Todas elas com datas específicas de entrega. Mas logo no início, percebeu-se que alguma coisa estava errada: como há muitos alunos nas “turmas”, a orientação agora é que não se façam fóruns, para que os alunos não descubram a quantidade imensa de colegas que há nas turmas.
Além disso, esse programa foi implementado em uma universidade, para disciplinas que muitas vezes, antes, os alunos cursavam presencialmente. E para as quais, inclusive, pagam mensalidade. Só que, talvez porque não temos agora mais “turmas”, as aulas começaram um mês depois do previsto, e os alunos obviamente chiaram, porque pagaram um mês em que não tiveram aula. Eles não compraram um pacote de EaD, de uma disciplina, como no meu caso de Berkeley, em que eu podia começar e terminar quando quisesse. Eles compraram aulas por determinado período, mas não receberam educação em 20% do período que pagaram.
Ou seja, deu tilt! Temos turmas mas não temos! Não bateu o tempo com o pagamento, não bateu a previsão de realização de atividades interativas, precisamos esconder dos alunos o que está acontecendo, os professores não são remunerados por turmas (mas por uma quantidade x de alunos) e assim por diante. Modelos mistos são interessantes quando são planejados como inovação, não quando acontecem por erro de concepção.
Não é preciso dizer que, para a combinação funcionar, foi preciso abandonar não só as atividades interativas, como as ricas possibilidades de encontros presenciais durante o semestre (pois nem caberia em uma sala de aula), já que os alunos estudam presencialmente, nos outros dias, na mesma universidade. E foi também preciso retroceder, transformar as aulas que começavam a tomar uma tímida cara de multimídia em simples arquivos pdfs. Era mais fácil, então, deixar os livros separados na biblioteca, os alunos fazerem as atividades e deixarem no escaninho do professor. O rico sistema utilizado na universidade passou a não ter função pedagógica. Talvez, no próximo semestre, já seja possível retroceder para a EaD por correspondência, com a vantagem de que não é preciso usar o correio. Talvez seja essa a direção da não-turma latina.
Foi também preciso forjar um tutor on demand, que ganha muito pouco, que não deve propor atividades complexas pois não é remunerado para corrigi-las, que deve evitar a todo custo a interação, enfim, um tutor o mais passivo possível. Quase um robô, não um guia para o aprendizado.
Lembrei-me da canção dos Secos e Molhados:
Jurei mentiras e sigo sozinho
Assumo os pecados
Os ventos do norte não movem moinhos
E o que me resta é só um gemido
Minha vida meus mortos meus caminhos tortos
Meu sangue latino
Minha alma cativa
Rompi tratados traí os ritos
Quebrei a lança lancei no espaço
Um grito, um desabafo
E o que me importa é não estar vencido