Introdução
Na primeira vez em que vi alguma coisa sobre a campanha Educação não é fast-food, não prestei muita atenção. Entretanto, depois que fui convidado para participar do Encontro Descentralizado da Região Sudeste do CFESS/CRESS, passeei pelo site com mais calma e achei tudo sensacional. No início de julho de 2011 postei minha avaliação inicial no Facebook e Twitter, contra a qual houve uma reação natural da maioria dos meus colegas que trabalham com EaD. Para preparar a minha fala “Graduação a Distância no Brasil e no mundo” no Encontro do Serviço Social, percorri e avaliei com bastante atenção todo o material disponibilizado no site da campanha. Ofereço aqui, portanto, minha contribuição aos esforços que os Conselhos de Serviço Social têm realizado na crítica da graduação a distância no Brasil, assim como a tentativa da explicação de minha posição para aqueles que trabalham com EaD. O texto incorpora também o rico debate que ocorreu durante o Encontro, realizado em São Paulo em 29 de julho de 2011.
É possível educar à distância?
não deixou de ser uma questão legítima.
Hubert Dreyfus, filósofo e professor da Universidade da California Berkeley, desenvolve em seu On the Internet (2003) uma extensa crítica à EaD. O capítulo 2 do seu livrinho tem o provocativo título de ‘How far is Distance Learning from Education?’ (‘Quão distante está a EaD da educação?’).
Para Dreyfus, a função da universidade é educar estudantes. Se ‘educação’ significa enviar informação de quem a possui para quem a recebe, o que Paulo Freire chama de ‘educação bancária’, a Internet faz isso bem, como também o faz o videoteipe ou qualquer mídia de gravação. Mas a EaD não pode ser concebida simplesmente como consumo de informação.
Para o professor da UC Berkeley, a educação requer a interação cara a cara entre estudantes e professores. O campus seria essencial na formação do estudante pela identificação que se estabelece entre o aluno e o local, o aluno e os colegas de classe e assim por diante.
Para Dreyfus, um dos propósitos da educação é formar cidadãos em vários domínios. Nesse sentido, ele propõe uma enumeração progressiva dos estágios pelos quais o estudante aprende por instrução, prática e aprendizagem a se tornar um especialista em algum domínio específico e na vida cotidiana: (1) principiante ou novato, (2) novato ou amador avançado, (3) competência, (4) proficiência, (5) habilidade ou perícia, (6) domínio, autoridade ou maestria, e (7) sabedoria prática.
Para o filósofo, a aquisição de habilidades acima do segundo nível requer o presencial. Apenas seres humanos envolvidos e encorpados podem se tornar proficientes e especialistas, e apenas eles podem se tornar mestres. Nesse sentido, Dreyfus defende que a universidade não pode ser desintermediada e lança uma questão: pode a presença física, necessária para adquirir habilidades em vários domínios e maestria de uma cultura, ser oferecida através da Internet?
O risco é importante no processo de aprendizado; quando o professor e a classe estão juntos, presencialmente, assumem um risco que não existe quando não estão interagindo (ou em fóruns assíncronos): o estudante, de um lado, arrisca-se a ser chamado a demonstrar seu conhecimento sobre o assunto da aula, e o professor, do outro lado, arrisca-se a ser questionado sobre o que não pode responder. Assim, a EaD poderia produzir não apenas oportunidades de aprendizado mais debilitadas, mas também professores mais fracos.
Presencialmente, o professor aprende com os alunos, aprende que alguns exemplos funcionam ou não, que algum material precisa ser apresentado diferentemente de outros, que ele estava simplesmente errado sobre algum fato ou teoria, ou mesmo que havia uma perspectiva melhor para encarar determinada questão. A EaD passiva, por sua vez, remove o risco do processo de ensino e aprendizagem.
Dreyfus faz também uma interessante comparação entre a EaD por vídeo e a educação presencial. Eu não posso controlar para onde a câmera aponta e no que ela faz o zoom, da mesma maneira como controlo o que atrai a minha atenção experiente quando a classe está na minha frente. Eu não posso me mover durante a aula, como ocorre na sala, chegando às vezes mais perto dos alunos, às vezes me afastando, encontrando assim a melhor perspectiva para a aula; tampouco posso estabelecer contato no olho. Com a EaD, para Dreyfus, eu perco a possibilidade de controlar o movimento de meu corpo para ter uma visão melhor do mundo.
Perde-se ainda um sentido de contexto, que no caso do ensino seria o astral da classe. Em geral, o astral governa como as pessoas dão sentido a suas experiências, e o nosso corpo é justamente o que permite que permaneçamos ligados a um astral. A relação entre os atores e a plateia determina o desenvolvimento de uma peça, ao contrário do cinema.
Poderia a EaD, mesmo interativa, reproduzir a sensação de estarmos em uma situação de maneira que o que for aprendido possa ser transferido para o mundo real? Esta é uma questão que interessa diretamente ao Serviço Social, como veremos. Para Dreyfus, os alunos virtuais não teriam a experiência que vem da resposta direta às situações arriscadas e perceptualmente ricas que o mundo nos apresenta. Sem a experiência de seus sucessos e fracassos encorpados em situações reais, eles não seriam capazes de adquirir a habilidade de um especialista que responde imediatamente a situações presentes como um mestre, ou, especificamente no caso que nos interessa, como um assistente social. Para Dreyfus, a expertise não pode ser adquirida no cyberespaço desencorpado, pois necessita do exercício de interconexão de corpos, da intercorporalidade, da presença física.
Outro autor que argumenta na mesma direção é Albert Borgmann (2000), em seu Holding on to Reality (Agarrando-se à Realidade). Para ele, a educação implica disciplina para sustentar o esforço de aprendizado, que por sua vez precisa do suporte de tempo, espaço e socialização que têm sido parte da natureza humana desde que nos envolvemos em um mundo de informações naturais.
Para Borgmann, o campus tradicional recria uma ordem espacial e temporal essencial à informação natural. As aulas têm seu tempo e espaço específicos. Elas ocorrem em salas cavernosas com boa parte da atenção centrada em uma pessoa. Seminários são conduzidos em pequenas salas com grande interação entre alunos e professores. Os laboratórios têm um cheiro característico e envolvem as mãos, assim como os olhos e os ouvidos. As bibliotecas oferecem espaços para leituras silenciosas. Lanchonetes nos cercam com seu zumbido confortante. Mesmo na pequena escala do escritório, escrever aqui, procurar uma pasta ali, levantar para pegar um livro da estante caracterizam-se como envolvimentos menores do corpo que ajudam a espacializar e temporalizar a informação, tornando mais provável sua transformação em conhecimento.
A informação tecnológica, ao contrário, brota infinita e incansavelmente de uma fonte em direção a um corpo imobilizado por um sentido. Ou assim seria, se microcomputadores fossem uma fonte de informação verdadeiramente rica. Mas o que ocorre é um desequilíbrio proibitivo entre a informação tecnológica abundante, de um lado, e a capacidade de absorção severamente atrofiada, de outro.
Borgmann faz eco a Dreyfus em relação às habilidades e competências pseudo-adquiridas virtualmente. Muitos tipos de competência não podem ser verificados mecanicamente e, daquelas que podem, poucas podem ser adquiridas por estudantes virtuais. Dreyfus e Borgmann comprovam que a questão “É possível educar à distância?” não está superada e continua sendo legítima. Podem servir para a argumentação do serviço social contra a EaD, apesar de que não é neste nível geral que a campanha se posiciona.
Primórdios da EaD
Abandonemos a desconfiança de que, à distância, a educação saia de alguma forma perdendo. Consideremos que a EaD é tão ou mais eficiente do que a educação presencial. Como fazemos EaD hoje?
Nos primórdios da EaD não havia telefones, rádio, tvs, PCs, iPhones nem iPads. Naturalmente, estabeleceu-se um modelo de EaD por correspondência, cujos principais atores eram: (a) conteudista, (b) pedagogo, (c) designer gráfico e (d) tutor.
Hoje vivemos uma situação completamente diferente, com o desenvolvimento das TICs, da internet, das ferramentas da web 2.0 e das redes sociais, que passaram a ser incorporadas à educação e permitem a interação à distância, inclusive síncrona. Entretanto, na maioria dos modelos de EaD que utilizamos no nosso país, não fizemos mais do que alterar ligeiramente o esquema (o designer instrucional substituiu o pedagogo e o webdesigner substituiu o designer gráfico), e a equação continuou basicamente a mesma: (a) conteudista, (b) designer instrucional, (c ) webdesigner e (d) tutor (CDWT).
Fordismo/NeoFordismo/PósFordismo
Para nos ajudar a interpretar essa história, é sempre bom convocar o alemão Otto Peters (2001), para quem a EaD, sobretudo nas décadas de 60 e 70, possuía características industriais, com divisão de trabalho, economia de escala e processos de produção tipicamente industriais. Os primeiros interessados no ensino a distância foram empresários que queriam ganhar dinheiro, não necessariamente educar. Teria ocorrido, então, uma modificação nos métodos de ensino e aprendizagem, através da divisão e do planejamento do trabalho, tendo o ensino se tornado mecanizado (e mais tarde automatizado), padronizado, normatizado, formalizado, objetivado, otimizado e racionalizado. O ensino torna-se, em suma, industrializado, produzido e consumido em massa, através da alienação tanto do docente quanto do discente e da utilização de uma linguagem não-contextualizada.
Para Peters, esse modelo fordista estaria ultrapassado há bastante tempo pelo neofordismo e pós-fordismo, em que, dentre outras mudanças, a divisão do trabalho seria praticamente eliminada. Se no fordismo, assim como no modelo CDWT, o tutor não produz conteúdo, no neo e pós-fordismo o professor é o autor e/ou organizador do próprio material que utiliza na docência. Como estamos em nosso país?
Em geral, nos modelos de EaD que imperam no Brasil, o “conteúdo” que o “professor” deve “ensinar” já vem todo pronto, muitas vezes inclusive as atividades, sem que haja a possibilidade de interferência e mudança em praticamente nada – ou em nada. Na educação presencial não ocorre isso – o professor tem em geral um programa a seguir e uma bibliografia de referência, mas tem liberdade de ajustar o ritmo das aulas e das atividades para sua turma, levando em consideração suas características específicas, podendo alterar e propor novas atividades, modificar o programa e o conteúdo, alterar as fontes a serem indicadas aos alunos etc. Isso me parece ser pouco explorado pela campanha “Educação não é Fast-Food”.
Para Dirr (2003), por exemplo, com a EaD o ofício do professor estaria sendo fragmentado em uma série discreta de tarefas que passam a ser realizadas por diferentes pessoas. Uma maneira de quebrar a função pedagógica do professor seria justamente dividir o processo de educação em componentes, como: desenvolvimento de currículo, desenvolvimento de conteúdo, entrega da informação, mediação e tutoria, serviços de suporte aos estudantes, administração e avaliação. Isso resultaria na des-montagem, des-integração e des-especialização da profissão de professor, da mesma maneira que ocorre com um operário quando uma especialização é substituída pela introdução de máquinas na mesma função. Isso também é pouco explorado pela campanha. Mas num sentido mais amplo, como veremos, para o Serviço Social a graduação à distância geraria uma heterogeneidade cada vez maior, o que seria negativo para a profissão.
Tutor é Professor
O movimento “Tutor é Professor” defende que a função de tutoria em EaD deve ser considerada função docente, exercida por professores com vinculação às IES, envolvidos em pesquisa e extensão, remunerados como professores etc. Cf. p.ex.
Carta de João Pessoa
Blog
Twitter
Cf. tb., como crítica à precarização do trabalho docente em EaD:
BRUNO, Adriana Rocha; LEMGRUBER, Márcio Silveira. Dialética professor-tutor na educação online: o curso de Pedagogia-UAB-UFJF em perspectiva. III Encontro Nacional sobre Hipertexto, Belo Horizonte, MG, 29-31 out. 2009.
Tutor toma o lugar de professor no ensino a distância. Comenta Minas (blog), 19 abr. 2011.
Avaliação
Testes de múltipla escolha como instrumentos de avaliação caem como uma luva nos modelos fordistas, o que os documentos da campanha “Educação não é fast-food” apontam ocorrer no Brasil, em Serviço Social. E essas avaliações já vêm muitas vezes prontas para o tutor, já estão feitas e ele não pode alterá-las. Isso é muito diferente de uma situação em que o professor tem em mãos o poder de planejar e elaborar a avaliação mais adequada a cada situação, a cada turma, a cada conteúdo, a cada momento do curso e assim por diante. O design da avaliação é outra coisa que é retirada das mãos do professor nos modelos fordistas de EaD.
$$$, não Educação
Esses modelos fordistas servem em última instância ao capital, gerando lucros e dividendos para empresas, não estando primordialmente preocupados com a educação. O que está muito bem apontado na CFESS Manifesta especial: Educação não é fast-food (2011):
“Trata-se de denunciar quem se beneficia com a educação à distância: de um lado os ‘tubarões’ do ensino, que ficam cada vez mais ricos e que têm um único objetivo – vender uma mercadoria. E de outro lado, o governo, que se desobriga da execução da política pública de educação e acena com a mão do mercado o EaD como única saída. Desse modo, o ensino de graduação à distância assume a condição de um novo fetiche social, pois, em nível da aparência do fenômeno, apresenta-se como democratização do acesso, o que esconde sua essência mercantil.”
Graduação à Distância no Ensino Privado
Uma historinha.
Uma disciplina presencial e semestral numa Instituição de Ensino Superior (IES) tem 6 professores, cada um com 3 turmas, totalizando 18 turmas. Cada turma tem em média 50 alunos, e as aulas duram 4 horas por semana.
Com a possibilidade aberta pelo MEC de as IES oferecerem 20% de sua carga horária em EaD, as disciplinas passaram a ser oferecidas à distância, com os professores (agora tutores) mantendo seus 50 alunos por turma, realizando diversas atividades de interação durante o semestre e elaborando instrumentos de avaliação adequados à nova situação. Esse era o cenário interessante para o qual a coisa caminhava, mas logo desvaneceu.
Reestruturação: há agora 400 alunos por “turma”, as atividades e as provas são de múltipla escolha, e o tutor (agora não mais professor) não deve mais realizar atividades de interação (mesmo porque não daria tempo), apenas enviar avisos motivacionais para os alunos, informando-os de que o conteúdo da aula X está disponível, que o prazo para realizar a atividade de múltipla escolha está vencendo etc. A remuneração não diminuiu, mas o professor passou a receber menos horas-aula por seu trabalho – agora apenas 2, não mais 4. Ou seja, ele recebe agora 2 horas-aula de remuneração por 400 alunos, quando antes recebia 4 horas-aula por 50 alunos.
A IES obviamente não precisa mais dos seis tutores, um deles agora é suficiente para dar conta da nova função “docente”: o tutor oficial da disciplina. Os outros cinco são demitidos, não conseguem se recolocar profissionalmente (porque o movimento é generalizado nas IES privadas) e trocam então de profissão: são agora cabeleireira, corretor de imóveis etc.
Numa próxima etapa, nem mais do tutor remanescente a IES precisa – ela pode agora contratar um recém-formado para dar conta da função, que é muito mais a de monitor do que de professor.
O último tutor é então dispensado. Chega-se ao cúmulo de utilizar um mesmo “tutor” (agora monitor) para diversas disciplinas, de muitas das quais ele não domina nem mesmo o conteúdo.
Essa é a história da adoção da EaD em algumas (muitas?) IES privadas em nosso país, não apenas no caso dos 20%. Cf. o recente Educação a Distância = demissão de professores? (ROBERTI, 2011). Especialmente no caso dos 20%, é importante lembrar que isso ocorreu em geral com disciplinas de humanas, ou seja, decidimos no Brasil que Sociologia, Psicologia, Filosofia, Metodologia Científica e Comunicação e Expressão, dentre outras, cairiam melhor à distância do que presencialmente. É isso o que queremos? Quem tem se mobilizado?
Graduação a Distância no Ensino Público: UAB
Mesmo os militantes da EaD concordam que os problemas da UAB (Universidade Aberta do Brasil) são inúmeros, mas gostaria aqui de ressaltar apenas os relacionados à questão da docência: o fato de o professor, ao exercer a função hoje denominada tutor, receber uma remuneração ínfima em relação à remuneração de professores que exercem a docência na mesma instituição pública; o fato de receber uma bolsa (e não salário), sem nenhum direito trabalhista; e a transitoriedade e instabilidade de sua atuação, sem vinculação com a instituição.
Não existe a figura do professor na UAB, que, por incrível que pareça, é voltada primordialmente para a formação de professores. Ou seja, procura-se formar professores presenciais para o ensino fundamental e médio, para cobrir um déficit previsto pelo MEC, com material pronto e tutores que não são contratados, que não são professores, que não têm vínculo pedagógico com a instituição etc. Parece-me que este ponto também é pouco explorado pela campanha, mesmo porque ele extrapola o campo do Serviço Social e envolve o futuro da educação em todo o país. Vivemos um cenário surreal no Brasil: resolvemos enfrentar o déficit de professores (presenciais, é bom ressaltar novamente) com uma formação por EaD sem professores! A campanha do Serviço Social (e muitos autores) sugerem que o interesse do governo são estatísticas de alunos formados no ensino superior, não exatamente qualidade; mas explora pouco os problemas da UAB.
Modelos Interativos e Colaborativos de EaD
Há modelos de EaD que procuram se afastar do fordismo.
O professor Wilson Azevedo oferece pela Aquifolium Educacional, há décadas, cursos livres à distância que primam pela intensa interação, utilizando grupos e listas de email.
A Boise State University e a San Diego State University, por exemplo, oferecem mestrados à distância em Tecnologia Educacional em que o “tutor” é um professor da instituição, que tem autonomia para organizar o curso da maneira que considerar adequada, modificar e acrescentar material, é o professor que participa das atividades interativas, que avalia atividades e dá retorno aos alunos etc.
Experiência mais radical é o recente Proyecto Facebook, que utiliza várias mídias sociais.
Os MOOCs (Massive Open Online Courses) desenvolvidos por George Siemens e os conectivistas também são experiências bastante radicais.
Mas estes são todos exemplos de cursos de cursos livres, experimentações ou de pós-graduação. Perguntei recentemente no meu Twitter se alguém conhecia um curso de graduação a distância que não seguisse o modelo fordista, e a única resposta que recebi foi do curso de Pedagogia a Distância (PEAD) da UFRGS.
Avaliação da Campanha
Em primeiro lugar, cabe ressaltar que a campanha “Educação não é fast-food” é mais interativa do que muitos cursos de EaD, utilizando inclusive criativamente redes sociais.
Estes me parecem ser pontos essenciais que a campanha aborda e em que acerta nas críticas à EaD no Brasil:
número elevado de alunos por supervisor ou professor
tutores não possuem contrato formal de trabalho
condições precárias de trabalho
qualificação dos tutores
dinâmica que apenas resolve dúvidas eventuais dos alunos no plano individual
apostilas com todo o material pronto
apostilas que resumem os conteúdos, material padronizado, fragmentado
testes de múltipla escolha
educação compreendida como um produto comercializado no mercado – no caso da EaD, isso fica mais caracterizado
dissociação entre ensino, pesquisa e extensão, não assegurando uma ampla produção científica e bibliográfica na área, articulando graduação e pós-graduação
Isso não ocorre, é claro, em todos os cursos de graduação em EaD, mas são marcas do fordismo que podem ser encontradas no Brasil tanto no ensino superior à distância privado quanto público.
A campanha afirma que em geral as provas de EaD são realizadas à distância. Essa, me parece, não é a situação comum; se foram encontradas situações assim no Serviço Social, talvez sejam exceções. De qualquer maneira, seria necessário discutir com mais profundidade a questão da avaliação na EaD, porque dependendo do tipo de atividade proposta, realizá-la à distância não é um problema. Todas as atividades que valem nota no mestrado em Tecnologia Educacional da Boise State University, por exemplo, são realizadas à distância.
Uma questão que não é explorada pela campanha é a da hora-aula, como referência para a remuneração do trabalho docente em EaD. Como “calcular” a hora-aula online? Em geral, os tutores são remunerados considerando que eles teriam que se dedicar x horas ao trabalho virtual, quando na verdade acabam precisando dispor de muito mais horas do que o que consta em seu contrato de trabalho.
Pelo próprio nome da campanha, poderiam também ser mais explorados os conceitos de McWorld e Disneyficação (presentes por exemplo em Ess, 2004), e mesmo de McEaD. Há um risco de o conteúdo da EaD ser, num futuro próximo, ditado apenas pelas bibliotecas virtuais de algumas grandes editora, o que caracterizaria um McDonald’s ou Blockbuster do conteúdo educacional online, com poucos fornecedores internacionais de conteúdo. Qualquer um pode tirar suas conclusões da adequação desse modelo para a educação no Brasil.
Críticas à Campanha
Inúmeras críticas têm sido realizadas à campanha por militantes da EaD. Coletei todas as que encontrei online, selecionei-as e as organizei, para discuti-las por aqui.
Uma crítica comum é que a campanha peca na generalização, já que a educação presencial também teria os mesmos problemas. A culpa dos problemas apontados pela campanha não poderia ser atribuída à modalidade, mas às instituições, às maneiras equivocadas de se implantar um conceito (não o conceito em si) etc. Muitos modelos presenciais também adotam o modelo fast-food – a campanha, portanto, deveria metralhar os 2 tipos de McEducação (presencial e à distância), não apenas a EaD. Nesse sentido, a campanha faria vistas grossas aos problemas da educação presencial, e a associação da modalidade à qualidade seria preconceituosa, um retrocesso, prestando um desserviço à educação.
Esta crítica me parece estar respondida, inclusive de maneira muito adequada, nos próprios documentos dos Conselhos de Serviço Social:
“Ainda que tenhamos clareza de que os processos de precarização da educação também atingem os cursos presenciais, há nichos de resistências. É possível detectar esforços de professores/as e de alunos/as nesses espaços para assegurarem a materialização da formação profissional com qualidade. Na graduação à distância, centrada no ensino virtual ou mediado por mídias, essa condição é inviabilizada, diante da automização das telessalas e pólos, das vivências individuais do processo de ensinoaprendizagem, que não possibilitam as práticas organizativas e coletivas dos/as estudantes e dos/as trabalhadores/as envolvidos/as.” (CFESS Manifesta especial Educação não é fast-food, 2011).
Afinal, devemos criticar as ideias de Platão ou as formas como essas ideias estão efetivamente implementadas no mundo real? A crítica do Serviço Social não é filosófica (apesar de que, como procurei mostrar, é legítimo questionar as bases teóricas da EaD), mas à EaD que efetivamente se faz ao nosso redor, no nosso país.
Além disso, a crítica é específica à graduação em EaD no Serviço Social, ou seja, à formação básica do profissional que trabalhará como assistente social, não à EaD em geral, ou seja, não é uma crítica geral à modalidade:
“Não estamos discutindo a educação a distância em todas as suas modalidades. Pensamos que muitas de suas técnicas e invenções pedagógicas podem ser suporte ao processo de ensino-aprendizagem presencial em vários de seus níveis. Queremos a tecnologia e a interatividade virtual em favor da qualidade. O Conjunto CFESS/CRESS e a ABEPSS, em articulação com a Universidade de Brasília, por exemplo, estão realizando um curso de especialização nesta modalidade, envolvendo cerca de 800 assistentes sociais, em sua segunda edição (o primeiro ocorreu entre 1999 e 2002). Portanto, não somos avessos à tecnologia e atrasados frente às inovações educacionais.” (Carta Aberta aos Estudantes e Trabalhadores dos Cursos de Graduação a Distância em Serviço Social no Brasil, 2009)
A campanha afirma também que não há debates em EaD, sendo as dúvidas tiradas apenas por email. A EaD se caracterizaria pelo processo informativo – isso ocorre, como vimos, no fordismo, e por consequência em muitas de suas ocorrências no Brasil. Várias críticas à campanha, entretanto, apontam com razão que pode sim haver debate na EaD, até mais do que no presencial, e que em geral esses debates não ocorrem por email, mas em Ambientes Virtuais de Aprendizagem. Para representar melhor a preocupação do Serviço Social, talvez a questão precise ser reformulada: seriam os debates na EaD, em geral assíncronos e realizados em fóruns de discussão, suficientes para a formação de um profissional de serviço social?
Parece-me uma preocupação extremamente legítima questionar se o debate à distância, em geral assíncrono, é suficiente para formar um profissional na graduação. Como afirmou uma palestrante durante o Encontro, debates presenciais permitem (e forçam) a elaboração qualificada e crítica da realidade exatamente no momento em que estão ocorrendo. Como vimos, Dreyfus compara nosso corpo a câmeras na EaD; poderíamos fazer o mesmo em relação aos AVAs. Parece-me legítimo um Conselho defender que, para a formação de seus profissionais, debates presencias síncronos são imprescindíveis, não podendo ser substituídos por debates à distância assíncronos.
Discriminação e Preconceito
Um dos pontos utilizados na crítica à campanha são os diversos estudos que apontam não haver diferenças significativas entre os alunos formados em cursos presenciais e à distância (http://www.nosignificantdifference.org/), ou mesmo que alunos formados em cursos à distância têm vantagens. Um amplo estudo de meta-análise (MEANS et al, 2009), por exemplo, encomendado pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos, desenvolveu uma pesquisa sistemática na literatura entre 1996 e 2008, identificando mais de mil estudos empíricos sobre aprendizagem online. A meta-análise concluiu que, em média, os alunos em condições de aprendizagem online tiveram desempenho modestamente superior quando comparados àqueles que receberam ensino presencial.
Outras estatísticas utilizadas como crítica à campanha são os resultados do Enade a partir de 2010. Em vários cursos, os alunos que de cursos à distância tiveram desempenho superior em relação aos alunos de cursos presenciais. Poder-se-ia é claro discutir a estrutura do Enade e o que exatamente ele consegue medir (e comparar), e seria também importante avaliar até que ponto os resultados do Enade não representam o fato de muitos alunos de cursos presenciais, organizados politicamente, boicotarem as provas. As notas baixas de alguns cursos presenciais seriam, assim, resultados da participação política dos seus alunos.
Alunos e Professores estão estudando e trabalhando dentro da lei
Este talvez seja o ponto mais delicado para os Conselhos de Serviço Social na campanha. Afinal de contas, os alunos que estudam Serviço Social à distância estão estudando amparados pelo MEC, assim como os tutores estão trabalhando amparados pela lei. Os Conselhos de Serviço Social alegam que não negam registro aos alunos formados à distância, mas de qualquer maneira é delicado um Conselho fazer uma campanha que vai contra o que seus profissionais (e futuros profissionais) estão fazendo dentro da lei: ensinando e estudando.
Crítica mais Ampla
A experiência de ter participado do Encontro Descentralizado da Região Sudeste do CFESS/CRESS foi riquíssima, e dentre outros pontos me levou a compreender que a crítica feita contra a EaD é ampla, em função da politização da categoria profissional:
“A política em curso não significa democratização do acesso ao ensino superior, mas a reprodução de informações recolhidas de forma fragmentada da bibliografia da profissão e transmitidas através de apostilas e manuais de baixa qualidade que não observam a perspectiva de totalidade e criticidade, comprometendo a formação profissional e o atendimento à população brasileira.” (Carta Aberta aos Estudantes e Trabalhadores dos Cursos de Graduação a Distância em Serviço Social no Brasil, 2009).
Como afirmou uma palestrante durante o Encontro, se você entra em um laboratório para um treinamento de professores em EaD e abstrai tudo o que está acontecendo ao seu redor, tudo é maravilhoso!
Os Conselhos de Serviço Social entendem que a categoria tem uma direção social que é incompatível com a formação à distância. A profissão de assistente social tem um projeto político e almeja uma realidade contrária àquela em que vivemos – enquanto a EaD serviria para reforçar a realidade política que é necessário modificar. Na formação básica da profissão, ou seja, na graduação, a educação presencial seria essencial. Para lidar com moradores de rua, com pessoas com problemas mentais etc., a formação à distância não seria suficiente (e a tipologia de Dreyfus serve como referência para esta argumentação, ressaltando a importância do corpo-a-corpo).
Os Conselhos dão também um valor muito elevado ao estágio, momento em que o aluno teria a oportunidade de realizar a apropriação crítica da realidade; e, segundo as avaliações feitas, os estágios em cursos de graduação de EaD estão sendo praticamente ignorados, inclusive com dificuldades para sua realização por parte dos alunos.
Outro questionamento da classe é: por que algumas profissões, como medicina, psicologia etc., não admitem a formação de seus profissionais por EaD, e o Serviço Social deveria admiti-la? Quem deve ter o poder de definir se a EaD serve (ou não) à formação de determinado profissional?
Conclusão
Apoio a defesa da incompatibilidade do ensino à distância com a formação em serviço social, da forma como ela tem sido desenhada em nosso país. Entendo que os Conselhos de Serviço Social têm um lugar político definido de onde falam e sua fala é legítima.
Penso, ainda, que as críticas da campanha e do posicionamento geral mais amplo da categoria devem servir como exemplo para que rompamos o nosso silêncio, e como referência para as críticas que precisam ser feitas contra a maneira como a EaD tem sido implementada em diversos projetos no Brasil, privados e públicos. São escassas as críticas que vêm de dentro e em geral os militantes da EaD saem rapidamente em defesa de uma modalidade platônica (“a educação a distância”), com um discurso abstrato que muitas vezes ignora o que está ocorrendo efetivamente ao nosso redor.
Além disso, criticar modelos e políticas não significa criticar todas as pessoas que estão envolvidas nesses processos. Os alunos que fazem curso de graduação de EaD em Serviço Social não estão fazendo nada de errado e não podem, obviamente, ser prejudicados; mas isso não significa que mesmo eles não devam lutar por uma educação melhor para o nosso país, tendo uma visão crítica do próprio processo que estão vivenciando e colaborando para construir. Tampouco os tutores de cursos de graduação à distância em Serviço Social podem ser prejudicados em seu trabalho; o que também não significa que eles não devam ser críticos em relação ao papel social que desempenham, exigindo serem tratados como professores em todos os sentidos (trabalhista, pedagógico etc.). Afinal, senso crítico não significa ter uma opinião formada sobre tudo:
“Um indivíduo que possui a capacidade de analisar e discutir problemas inteligente e racionalmente, sem aceitar, de forma automática, suas próprias opiniões ou opiniões alheias, é um indivíduo dotado de senso crítico.” (CARRAHER, 1993, XIX)
Eu praticamente respiro EaD o dia inteiro. Acredito que é possível educar à distância, mas também acho que há muitos elementos do presencial, essenciais na formação de um ser humano, que não conseguimos reproduzir adequadamente à distância. Acredito que é possível realizar uma EaD interativa e colaborativa, mas também reconheço que não é esse o modelo dominante em nosso país.
Senso crítico tampouco significa ter certeza de tudo. Por tudo o que foi dito aqui, deve-se respeitar a crítica do Serviço Social à EaD pelo menos para nos lançar a um estado de dúvida:
“… o pensador crítico precisa ter uma tolerância e até predileção por estados cognitivos de conflito, em que o problema ainda não é totalmente compreendido. Se ele ficar aflito quando não sabe ‘a resposta correta’, essa ansiedade pode impedir a exploração mais completa do problema.” (CARRAHER, 1993, XXI)
Esse estado de dúvida talvez nos ajude a visualizar um modelo de graduação semipresencial, pautado pela qualidade e que incentive a participação política.
Quando acabo de redigir este documento, fico sabendo que foi obtida na justiça uma liminar contra a campanha “Educação não é fast-food”. Espero que isso não cale a voz (quase única) dos Conselhos de Serviço Social, mesmo porque a crítica não se resume à campanha. Durante o Encontro já me coloquei à disposição para participar de debates e propus inclusive que representantes dos Conselhos de Serviço Social compareçam ao CIAED – Congresso Internacional ABED de Educação a Distância, a ser realizado em Manaus de 30 de Agosto a 02 de Setembro. Seria uma excelente oportunidade para ampliar o debate. Afinal de contas, cabe a nós, alunos, professores e profissionais, construir o modelo de educação, e particularmente de EaD, que queremos para o nosso país: as diretrizes não podem simplesmente vir de cima.
Referências
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BRUNO, Adriana Rocha; LEMGRUBER, Márcio Silveira. Dialética professor-tutor na educação online: o curso de Pedagogia-UAB-UFJF em perspectiva. III Encontro Nacional sobre Hipertexto, Belo Horizonte, MG, 29-31 out. 2009. Disponível em: .
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CARTA Aberta aos Estudantes e Trabalhadores dos Cursos de Graduação a Distância em Serviço Social no Brasil. Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa de Serviço Social; Conselho Federal de Serviço Social; Conselhos Regionais de Serviço Social; Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social. Campo Grande, 09 de setembro de 2009. Disponível em: .
CFESS Manifesta especial: Educação não é fast-food. Conselho Federal de Serviço Social. Brasília, 25 de maio de 2011. Disponível em: .
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João Mattar
joaomattar@gmail.com
http://blog.joaomattar.com
02 de Agosto de 2011 (versão 1.0)
(este post está também publicado em pdf, com os devidos ajustes)