Viktor Mayer-Schoenberger acaba de publicar um trabalho bastante interessante, Useful Void: The Art of Forgetting in the Age of Ubiquitous Computing, na série Working Paper da John F. Kennedy School of Government da Harvard University. Tenho trabalhado este tema da memória e do esquecimento em Filosofia, com meus alunos de Ciência da Computação, Sistemas de Informação e Psicologia.
Como seres humanos, temos a capacidade de lembrar – e também de esquecer. Esquecemos com mais facilidade do que lembramos.
Nietzsche, por exemplo, entende a capacidade de esquecimento como uma função reguladora no homem, similar à dos órgãos fisiológicos. A consciência cresce terrivelmente sem o auxílio dessa capacidade de esquecimento, tornando o homem ressentido presa de seus próprios fantasmas:
“… há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente chega a sofrer dano e por fim se arruína, seja ele um homem ou um povo ou uma civilização.”
(Considerações extemporâneas, II, Obras incompletas / Friedrich Nietzsche, col. Os Pensadores, § 1, p. 58.)
“… sem capacidade de esquecimento não pode haver nenhuma felicidade, nenhuma jovialidade, nenhuma esperança, nenhum orgulho, nenhum presente.”
A capacidade de se sentir, de tempos em tempos, a-histórico, seria uma função reguladora no ser humano. “Perder a si mesmo” é o nome de um dos mais belos aforismos nietzschianos:
“Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é preciso saber, de tempo em tempo, perder-se – e depois reencontrar-se: pressuposto que se seja um pensador. A este, com efeito, é prejudicial estar sempre ligado a uma pessoa.”
(Humano, demasiado humano, vol. 2, Obras incompletas / Friedrich Nietzsche, col. Os Pensadores, II, § 306, p. 150.)
Sem esquecimento não há digestão, e o homem que não digere tem problemas intestinais: o conhecimento fica entalado na garganta, não consegue nem mesmo ser mastigado.
A tecnologia digital, entretanto, segundo Schoenberger, teria invertido essa lógica, tornando muito fácil lembrar e quase impossível esquecer. Lembrar se tornou o padrão na era digital.
Viktor Mayer-Schoenberger analisa no artigo os riscos dessa mudança, pois, por exemplo, se o que fazemos pode ser usado contra nós no futuro, se todos os nossos comentários impulsivos são preservados, a falta de esquecimento pode nos levar a nos expressarmos com menos liberdade e abertura.
Ele defende então uma ecologia dos dados, em que, mesmo digitalmente, possamos esquecer como o ser humano tem esquecido, por toda a sua longa história. Isso seria alcançado por uma combinação de lei e tecnologia, que ensinaria os computadores a esquecer da mesma maneira saudável como nós nos esquecemos. Para o autor, os softwares deveriam, por lei, ser obrigados a esquecer, e os próprios usuários deveriam ser capazes de determinar a vida útil da informação que desejassem preservar.
Esquecer é um meio de separar informações úteis das inúteis.
E ao mesmo tempo é um meio apagar traumas. Muitas pessoas depois de traumas esquecem o que aconteceu.
Pensando num futuro onde existam andróides, pensando como humanos e tendo sensações, seria estranho um robô também nao ter essas características. Pois qualquer informação (errada ou inútil) seria guardada e poderia até entrar em conflito.
Temos como estipular tempo de vida de uma informação (dado) até mesmo no harware. A parte mais difícil é serparar a informação útil da não útil.
Professor João
Muito interessante o estudo. Realmente o computador torna possível a criação de uma grande memória que não apaga nunca, mas pra mim o maior problema é a busca infinita pela informação. Claro que esta busca tem nos levado a altos patamares tecnológicos, mas tem transformado a nossa sociedade em um nicho de transtornados. A obsessão pela maior quantidade de informações tem pirado nossas cabeças e faz com que o tempo passe mais rápido. Talvez o esquecimento realmente fosse preciso, mesmo que digitalmente, porque a cada dia temos múltiplas informações novas e ao mesmo tempo recorremos a milhares de informações antigas. Será que vamos precisar mudar o curso de memorização para um de esquecimento, mesmo que virtual?
Um abraço
Oi professor, tudo bem??? Espero que sim. Goseti muyio da página. Abraços
A cultura oriental ressalta que o “esquecimento” é uma característica humana. No entanto, tal esquecimento é considerado um “defeito” do homem, algo que pode levá-lo a ser incoerente, imprudente, de forma a prejudicar o seu desenvolvimento e o desenvolvimento da sociedade na qual ele vive.
Por conta disso, existem formas de exercitar a memória do homem. Este, inclusive, é um papel importante da Educação: trazer à tona tudo aquilo que há de importante na cultura do homem, para que ele continue seguindo em frente.
Há um livro bastante interessante de Luis Jean Lauand chamado “Provérbios e Educação Moral” (1997) que fala sobre o uso dos provérbios na cultura árabe como recurso importante para manter viva a cultura humana, de geração em geração, evitando assim, o esquecimento nefasto que, segundo o autor, assola sobretudo o ocidente, que não sabe valorizar os idosos com suas histórias que mantém viva a nossa cultura, por meio de uma educação moral.
João, eu reli agora este seu post e também o abstract do trabalho do Schoenberger, já que estou lendo Tomás de Aquino, que considera a memória uma virtude importante do homem, que deve ser trabalhada por meio da educação, já que o homem é um “esquecedor” nato.
Mas vejo que estamos aqui falando de níveis diferentes de memória.
Enquanto Tomás de Aquino fala do perigo de esquecermos aquilo que nos faz homens, culturalmente falando, Schoenberger, ou mesmo Nietzsche, falam da memória de curto prazo, da memória cotidiana, da memória individual. É isso?