Veludo – Conto de Adalberto Tripicchio

VELUDO
Adalberto Tripicchio

_ Baltazar, não esqueça de levar o Shake para passear.
Ora, isso Baltazar já sabia. Toda manhã levava o Shakespeare passear. Aliás, desde filhote, era ele quem o levava para o treinador.
Shake era um macho pastor-alemão capa preta belíssimo. E de natureza dócil. Apesar de seu tamanho e força, não serviria para cão-de-guarda. Até os estranhos recebia amigavelmente.
Agora adulto cuidava dos dois filhos pequenos de Elizabeth, a patroa, melhor que a própria babá.
Baltazar pensava de como Shake iria tratar seus próprios filhotes. Teria que arranjar-lhe uma bela esposa.
Costumavam passear sempre numa mesma praça arborizada, cheia de crianças, de jovens que subiam e desciam as árvores.
Lá estavam os amigos de Shake. Cães de todas as raças. Com os pequeninos cães-de-madame, Shake era cuidadoso no trato, pai de todos. Às vezes trazia algum deles, pegando pela nuca com a boca, sem machucar. Isto, quando algum deles corria algum risco com um cão maior e bravo, ou então, perto das ruas movimentadas, que margeavam a praça.
Baltazar amava esse cão. Desde que ele chegou, com dois meses de idade, à casa dos patrões.

* * *

Certa manhã, durante o passeio, Shake sumiu.
Baltazar andou por todos os cantos, esquadrinhando as ruas. Estavam longe das praias.
_ Onde ele foi parar, meu Deus?
Passada uma hora, que pareceram muitas, Shake saiu de um beco, próximo a uma casa em construção, onde havia montes de areia, pedras e tijolos.
Parecia muito alegre, agitado.
Foi um alívio Baltazar ver Shake. Não tanto pelos patrões, mas pelo amor que Shake lhe despertava. Observando melhor o beco de onde Shake tinha saído, saiu em seguida uma cachorrinha, sem raça definida, um mix de pequinês, com fox paulistinha, com cocker, sei lá.
Ela estava no cio como pôde perceber pelos machos que a seguiam, e, que Shake pôs a correr.
Não deu outra: Baltazar acompanhou a prenhez a se desenvolver naquela cadelinha de rua. Ele sabia, melhor dizendo, tinha certeza, que eram filhotes de Shake que estavam ali se desenvolvendo.
Baltazar chegou a dizer algo a sua patroa. Que Shake ia ser pai etc. Elizabeth não se interessou muito, pois eles não teriam pedigree.

* * *

Crianças freqüentavam aquela praça tão bonita e saudável no bairro de Ipanema.
Algumas delas viram o parto da cadelinha.
Eram filhotes muito grandes. Três deles. O primeiro nasceu bem. Os dois que saíram horas depois não resistiram. Juntamente com a mãe morreram.
Uma das meninas que brincava sempre naquela praça, adotou-o. Mas, não era o bastante, era preciso que, também, sua família o adotasse.
Já tinham dois cães-de-guarda Rottweiler, para a proteção da casa. Trazer um filhote era até uma temeridade para a segurança do cãozinho.

* * *

Tuquinha, a benfeitora do filhote, estava com cinco anos, tinha mais três irmãos. Dois rapazes, e a irmã Suzy.
Em reunião do clã de Tuquinha chegou-se à conclusão inequívoca que o filhote da praça não podia ficar por ali. Pensaram em dá-lo de presente a algum conhecido. Mas…, um cão sem tradição de família canina, não seria fácil.
Suzanne, a irmã mais velha, compadeceu-se da pequena Tuquinha, que estava desolada em se afastar do filhote – nem nome tinha -, aos prantos.
Foi nesta circunstância, que ambas, no quarto de Tuquinha, ela mais Suzanne, resolveram batizá-lo.
O belo exemplar tinha herdado o dorso de seu pai Shake. Felpudo, macio, brilhante e absolutamente preto. Traços de um legítimo capa-preta. No mais, coitadinho, tinha herança da mãe: manchas ao longo da pelagem, orelhas caídas. Chamaram-no Veludo.

* * *

Aqui surge Suzanne como personagem importante deste relato. Motivo: Suzanne, com pena de Tuquinha, e, também de Veludo, pensou rápido.
Seu namorado Johnny, que morava só em um apartamento grande no Leblon, tinha uma funcionária diarista que cuidava da limpeza geral e das refeições de Johnny.
Quem sabe ele não aceitaria um filhotinho tão cativante como aquele.

* * *

Suzanne era envolvente. Sabia que tinha um namorado de gênio difícil.
Johnny era filho-único de mãe pós-divórcio, que não conseguiu refazer sua vida. Ao contrário de seu pai, que logo após da separação, casou-se com uma namorada que já tinha há dois anos. Johnny tinha duas meias-irmãs, com quem não tinha o menor contato.
O pai de Johnny se tornou Diretor de Banco. Competente e influente, e carregado com toneladas de culpa pelo filho que ele via como um “abandonado”. Não hesitava em satisfazer-lhe as vontades.
Foi assim que lhe deu um belíssimo apartamento no Leblon, muito melhor que o de sua mãe. Foi um presente pelos seus vinte e um anos.

* * *

Suzanne e Johnny se conheceram numa dessas casas noturnas que toca música techno, num volume ensurdecedor. Onde Ecstasy corre solto.
Suzanne freqüentava esta casa. Ela era muito sensível a remédios. Com, uma pequena dose de Ecstasy, manifestou uma sede imensa que não passava nem com toda água do mundo. Todos sabiam que esse era um dos efeitos terríveis deste estimulante.
Suzanne, que já havia tomado uns dez copos de água mineral, vendidos a preço de ouro – evidente que os donos da casa sabiam muito bem como arrancar dinheiro de seus freqüentadores e seus efeitos colaterais.
A temperatura de Suzanne não baixava dos quase 40º graus de hipertermia – os seguranças da casa conheciam bem estes fenômenos e controlavam as crises – pânico geral. Johnny a levou a um Pronto Socorro.
Antes de Suzanne perder a consciência, dançava a mil com Johnny, que, ao que parece, se afeiçoou a ela. Ao menos pelo seu visual. Suzanne era bonita. Atendia aos padrões de beleza de então. Magra, acima de tudo, alta, morena, olhos verdes, cintura fina e quadris largos, sem ser culote.

* * *

Suzanne era tudo que Johnny podia esperar de uma companheira. Johnny era mercadoria de uma fábrica de narcisismo ISO 9000. Com os pais separados, desde os seus três anos de idade. Sua mãe recebera uma gorda herança do avô de Johnny, e procurava atender-lhe todas as vontades do filho-único sem pai. Este pai, por sua vez, um vitorioso nas finanças, dava tudo à sua atual família, e, especialmente, às suas duas filhas, e não hesitava em presentear Johnny em todos os seus desejos.
Johnny, embora essencialmente bom e generoso, foi condicionado a ser um mimado, em que desejo e satisfação de desejo aconteciam simultaneamente.

* * *

Suzanne encontrou-se com seu namorado em uma churrascaria em Copacabana. Jantaram fartamente. Ambos eram bons garfos. E, sem deixar de manterem suas formas de academia.
Ela criou coragem.
_ John, afeiçoei-me a um filhote de cachorro. Ele está em casa de meus pais, que já estão bem nutridos de cães.
_ E, daí?
_ Bem, eu não queria me afastar dele até que estivesse mais crescido, e doá-lo, ou deixar por conta de algum veterinário.
_ Sei.
_ Johnny, você poderia ficar com ele por uns dois meses? A Maria cuida deles. É só dar a ração. Nada mais. Deixe-o trancado na sua área de serviço.
(Claro, não era só isso que Suzanne pretendia.)
Johnny, que estava realmente interessado em Suzanne, concordou de imediato.
Tudo resolvido. Veludo crescia, enquanto isso via-se o quê fazer.

* * *

A relação entre Johnny e Suzanne sempre transitou por altos e baixíssimos. Um dia, acabaram. E pronto. Todos os sonhos construídos juntos, na energética adolescência, ruíram.
O rompimento era previsto.
E agora: encontramos Johnny em seu apartamento luxuoso, uma funcionária doméstica, que a mãe indicou, e lhe fazia de tudo, e, um cão, que apesar de não lhe dar trabalho algum, lembrava-lhe a namorada perdida.
Johnny, seu apartamento, seu celular, som 5.1, vídeos, funcionária e Veludo.

* * *

Apesar de Veludo não fazer nenhum ruído, de ser alimentado, às vezes dia sim dia não, de não ter seu espaço limpo, é fácil imaginar que no seu grau de consciência canina, tivesse a sensação que pior seria estar nas ruas.
Brigas com outros cães, comida sempre incerta, serviço da Prefeitura a caçá-los vivos ou mortos. Ainda assim, era melhor estar ali naquele cantinho da área de serviço, onde Maria lhe cuidava, quando vinha.

* * *

Johnny chegou à conclusão que dependia mais de Suzanne o quanto pensava. Pela sua história de vida: carências de mãe, sempre desesperada com as ações do marido; de pai, com a cabeça longe daquele ambiente familiar. Johnny teve seu desenvolvimento repleto de vazios. Suzanne era uma jovem que lhe compreendia e dava um suporte que ele nunca se deu conta do quanto lhe era importante.
Aí surgiu aquela danada ambivalência onde se ama e se odeia ao mesmo tempo. Ele amava Suzanne, e a odiava por lhe ser dependente. Ótima brecha para elaborar um bode expiatório.

* * *

Veludo serviu sob medida a esse fim. Johnny começou a odiar o pobre cão, que nada tinha a ver com sua história.
Ficava irritado por Maria ter de lhe cuidar. E quando Maria folgava, ficava igualmente irritado pela sua simples presença.
Como Johnny poderia se deixar transtornar por um cachorro?
Ele sempre teve tudo o que quis.
Em outros termos, Veludo era a presença constante da ausência insuportável de Suzanne.

* * *

Johnny passou a dormir mal. Demorava a conciliar o sono. Enquanto isso a cabeça ia funcionando.
_ Preciso me ver livre desse maldito cão.
Era o alvo que estava mais à mão.
Maquinou, maquinou…
Vou deixá-lo na Zona Norte.
Ele não terá como atravessar o Túnel Rebouças.
Certa manhã – Johnny não trabalhava – pôs uma corrente em Veludo.
Levou-o até sua Cherokee, prendeu-o nela. Rumou para além do Maracanã. Enxotou-o a pontapés para fora do automóvel. E voltou.
Estava livre daquele símbolo de sofrimento.

* * *

Três ou quatro dias depois, Johnny, que morava no térreo próximo à entrada de banhistas, ouve um roçar de unhas na porta de serviço de seu apartamento. Era Veludo feliz da vida de ter reencontrado seu dono e senhor. Fez-lhe a maior festa.
Johnny reconheceu essa reação do animal, entretanto suas limitações emocionais não lhe permitiram ir além.

* * *

Johnny maquinou, maquinou… Enquanto maquinava, não pensava na ausência de Suzanne.
Quando Johnny fez dezoito anos ganhou um pequeno barco com motor de popa Johnson. Aos vinte e um, o carro Honda esporte e uma corrente de ouro com cruz que passou a levar no pescoço.
De repente, brota-lhe a idéia salvadora.
_ Coloco o cachorro em meu barco, vou para bem longe da costa, lanço-o ao mar.

* * *

Domingo, colocou a corrente em Veludo, que ficou excitadíssimo em passear com seu dono.
Johnny o levou para o barco. Amarrou-o num canto, deu partida em seu motor.
Pensou em algum lugar especial para jogar Veludo fora. Talvez na direção do Arpoador haja um choque de correntezas.
Navegou por cerca de uma hora mar a dentro.
Chegado ao ponto, diz-se: é aqui.
Aproximou-se de Veludo.
Notou que o cão estava diferente, em uma posição, misto de defesa e de tristeza. Johnny não ligou. Agarrou o cão, desamarrou-o e o lançou ao mar, em uma manobra que quase não caiu também na água.

* * *

Imediatamente, deu velocidade máxima em seu Johnson. Não olhou para trás. Em dado instante, no caminho de volta, se deu conta que havia deixado seu cordão de ouro sair-lhe do pescoço e cair ao mar. Ficou furioso.
_ Aquele cão ordinário. Além de me dar este trabalhão todo, ainda me fez perder minha corrente que ganhei de meu pai.

* * *

Os dias passavam. Um, dois, três… Johnny estava aliviado – claro havia se livrado de seu bode expiatório -. Curtia seu som em seu apartamento.
Em dado momento, ouviu um ruído estranho na porta. Um raspar metálico. Algo indefinido.
Pelo olho mágico, nada viu.
Criou coragem, abriu a porta.
Um cão, encharcado de água e óleo, ofegante, os olhos apagados para o infinito, trazia em sua boca, com baba sanguinolenta, a corrente de ouro de Johnny.
Johnny não prestou atenção em Veludo. Só viu a cruz. Levou-a correndo ao lavabo para lavá-la. Estava perfeita. Vestiu-a.

* * *

Johnny se lembra do cão, volta para a porta. Lá estava Veludo, que não havia ultrapassado a soleira de entrada. Estava morto.

* * *

Hoje, passados os anos, Suzy e Johnny têm dois filhos adolescentes e três cães pastores, que ficam a correr pelo quintal, em torno da casa. Mas, nada basta para aliviar o peso que Johnny traz em sua vida.

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