Verdades e Mentiras (F for Fake) – Orson Welles

Assisti ontem em DVD ao filme Verdades e Mentiras (F for Fake), de 1973

Atenção: escrevo posts para refletir sobre filmes sem me preocupar em esconder o final. Portanto, se você não assistiu a este filme mas algum dia pretende assisti-lo, sugiro que pare de ler e só volte aqui depois, senão este post poderá acabar funcionando como um spoiler!

Roteiro: Orson Welles
Produção: François Reichenbach
Atores: Gary Graver, Orson Welles, Oja Kodar, Joseph Cotten, François Reichenbach e Elmyr de Hory
Trilha Sonora: Michel Legrand
Fotografia: Gary Graver e Christian Odasso
Edição: Marie-Sophie Dubus e Dominique Engerer

O filme tem cenas rodadas na Itália, França, Espanha e Estados Unidos, cf. o trailer:

O último longa dirigido por Orson Welles, baseado num documentário de François Reichenbach, aborda a questão da falsificação e da autenticidade, principalmente em arte, e por consequência os significados de autoria e verdade. Em várias passagens, experts em arte confundem quadros pintados por falsificadores como autênticos.

O filme gira ao redor do pintor e falsificador húngaro Elmyr de Hory (1906-1976) e seu biógrafo Clifford Irving (1930), que por sua vez teria falsificado uma biografia de Howard Hughes na década de 1970, pela qual foi inclusive preso e que deu origem ao filme mais recente The Hoax:

Welles lembra durante o filme como ele próprio forjou uma carreira no teatro, quando adolescente, e do célebre programa de rádio War of the Worlds, no qual, em 1938, “informou” sobre uma invasão de marcianos – história que é recontada no filme com algumas “falsificações”.

Num estilo livre e contemporâneo, mesclando cenas coloridas e preto-e-branco, o filme se desenvolve num ritmo alucinante de fluxo de consciência, com imagens paradas misturadas a cenas curtas, entrevistas e falas do próprio Welles. Esse ritmo diminui apenas no final, para algumas reflexões de Welles (introduzidas aqui por James N. Herndon como o momento mais profundo na história do cinema):

Depois da interessante abertura, o início do filme mostra uma longa e clássica cena de Oja Kodar (atriz croata e namorada de Welles) andando pela rua e sendo observada por homens que não sabiam que estavam sendo filmados (em algumas cenas é a irmã dela que aparece, mas não sabemos – somos enganados):

A parte final do filme envolve uma interessante história (que o espectador fica depois sabendo que é inventada) envolvendo Pablo Picasso e Oja Kodar, encerrada com um belíssimo e denso diálogo entre Welles e Kodar assumindo diferentes papéis:

O filme explora intensamente a metalinguagem, ou seja, o cinema falando sobre o próprio cinema, com cenas e comentários do próprio Welles sobre o processo de filmagem e edição. Aliás, as técnicas utilizadas para edição notabilizaram o filme.

Aqui, uma interessante análise do flime por Peter Bogdanovich:

É possível assistir ao filme inteiro (9 vídeos na playlist, total de 88 minutos) no YouTube:

No final, é impossível não colocar questões filosóficas tradicionais como: as histórias e a arte não seriam mentiras, fakes? Simulacros da realidade, cópias, invenções? Como garantir a autenticidade e a veracidade? Se nos lembramos da discussão de Walter Benjamin, no artigo A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, essas questões ganham mais força [In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo : Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v.1). p. 165-196 - cf. tradução online].

Benjamin estuda a fotografia e o cinema como formas de arte revolucionárias, que teriam alterado a própria natureza da arte e da percepção artística do homem contemporâneo.

Antes da possibilidade de reprodução da obra de arte, que as técnicas associadas à fotografia e ao cinema possibilitaram, Benjamin identifica em todo objeto de arte uma ‘aura’. Essa ‘aura’ estaria associada com o aqui e agora do objeto artístico – enquanto objeto irreproduzível, único, ele precisava ser presenciado em sua individualidade. A arte estaria então, antes da possibilidade de reprodução gerada pelo desenvolvimento tecnológico, associada com o ritual. A arte grega, por exemplo, procuraria sempre fundar valores eternos, justamente em função de sua técnica menos desenvolvida. Já a arte contemporânea estaria associada com valores transitórios e fugazes. Como afirma Benjamin:

“… com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida. A chapa fotográfica, por exemplo, permite uma grande variedade de cópias; a questão da autenticidade das cópias não tem nenhum sentido. Mas, no momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à produção artística, toda a função social da arte se transforma.” (p. 171)

Se a arte primitiva, em seu uso ritual associado à magia, caracterizava-se de alguma forma como secreta, a característica básica da arte contemporânea seria a sua produção visando sua máxima exposição. O cinema, inclusive pelo preço envolvido na produção de um filme, é já, em sua essência, uma forma de arte necessariamente voltada à exposição. Assim, a tecnologia a as possibilidades de reprodução geradas pela fotografia e pelo cinema acabaram transformando a arte de particular e privada em pública e coletiva. A reprodutibilidade técnica trouxe uma democratização da arte, tanto no sentido de sua produção quanto de seu consumo.

A ‘aura’ do quadro e da pintura encontra-se hoje totalmente destruída. A própria função do museu, enquanto local em que se encontram expostos quadros e objetos de arte, precisa ser repensada pela nossa sociedade. A diluição da ‘aura’ dos objetos artísticos, na modernidade, está portanto relacionada com o alargamento espacial que o cinema e a informática nos permitiram: o espaço de trabalho, o espaço de fruição da arte e o espaço de diversão encontram-se hoje todos em crise. Vivemos hoje a era do virtual.

A partir do momento em que a arte perdeu essa “aura”, com o desenvolvimento da fotografia e do cinema, é possível questionar: qual é hoje a importância do original? Como garantir a autenticidade? E, num sentido mais amplo, o que é a verdade? Quais os limites entre verdade e mentira? O que é a realidade? Tudo isso, Verdades e Mentiras aborda, numa linguagem cinematográfica revolucionária e metalinguisticamente, mostrando e discutindo com o espectador seu próprio processo de produção e edição. Mas, é bom lembrar, as questões não surgem apenas em função do cinema, mas em relação ao próprio processo de autoria e autenticação de pinturas, rádio, biografias etc.

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2 respostas a Verdades e Mentiras (F for Fake) – Orson Welles

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