CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. Trad. Maria Manuela Rocheta dos Santos. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. Resenha de João Mattar.
É o último livro de Cornford, em que ele revisita questões que discutiu em seus livros anteriores, principalmente From Religion to Philosophy. O final da segunda parte é inacabado. Cornord escreve muito bem, é realmente um deleite ler seus textos.
A ciência dos filósofos e a experimentação não se davam no nosso nível. Tratou-se mais de observação. Hipócrates, p.ex., teria criticado a aplicação da filosofia natural, com postulados a priori, à medicina empírica. A medicina explorava a natureza do homem de baixo para cima, ao contrário da filosofia natural:
“Todos os testemunhos conduzem à conclusão de que a teoria empírica do conhecimento foi uma teoria médica, formulada pela primeira vez por Alcméon. Surgiu naturalmente da reflexão sobre a maneira como o médico de facto procedia e data do período em que os médicos mais inteligentes começaram a sentir o desejo de libertar a sua arte dos seus antecedentes mágicos. Este mesmo desejo no sentido do racionalismo tinha já levado os filósofos de Mileto a libertar a cosmogonia do seu aparato mitológico. Mas enquanto o filósofo recorreu a postulados abstractos sobre o estado originário das coisas, o médico, com a sua atenção constantemente fixada em casos individuais que era preciso resolver na prática, seguiu o caminho oposto, partindo da observação do particular para a generalização.” (p. 67).
Os primeiros filósofos não faziam experiências nem ciência como as fazemos hoje. O interesse de Platão pela matemática (por conceitos, não pela realidade empírica) tem origem pitagórica. Daí a importância da teoria da anamnesis ou reminiscências: recordamos o que já sabíamos. Essas teorias têm ligação com a imaginação do poeta e do vidente, mais do que do médico-empirista. Há portanto uma natural aproximação entre poetas, videntes, sábios e filósofos: “[...] nem a teoria de Demócrito nem a de Platão constituiriam uma invenção, pois as 3 figuras que eles associam – o profeta, o poeta e o sábio – estavam originariamente reunidas numa figura só.” (p. 140).
O xamã, no Oriente, reunia as figuras do profeta, poeta e sábio, num paralelo com os pitagóricos. Os filósofos teriam consciência de sua herança dos xamãs, com a religião e moral misturadas com matemática, astronomia e música.
Em certo momento, começa na Grécia um conflito entre o vidente e o filósofo, uma separação entre o vidente (que prevê o futuro) e o poeta (que canta o passado), entre o vidente e o filósofo. As objeções dos racionalistas ao antropomorfismo dos mitos gera também a separação entre a filosofia e a poesia, quando o sobrenatural converte-se em metafísica.
Na segunda parte do livro, Cornford estuda Anaximandro e os elementos míticos das cosmogonias, que não são um raciocínio livre sobre a realidade. O hino a Zeus em Hesíodo tem origem em ritos. É também explorada a história da vida de Zeus.
No Oriente, o mito cosmogônico é uma coisa contada, enquanto o ritual é a coisa feita. O mito, quando racionalizado, perde partes do rito e, portanto, torna-se ininteligível em outras culturas. Cornford explora o paralelismo entre Marduk e Zeus, além de mitos cananeus e rituais palestinos.
Os filósofos naturais gregos oferecem explicações sem a utilização de deuses, num retorno dos universais míticos sem vestes antropomórficas.
O livro termina com um Apêndice, em que W. K. C. Guthrie, que também escreveu o Prefácio da obra, procura resumir o que provavelmente seria a conclusão do livro de Cornford, valendo-se para isso de anotações do próprio autor. O Apêndice termina assim:
“O perigo de terminar com este sumário insatisfatório está em poder transmitir a impressão errada de que os primeiros filósofos gregos (e dos povos antigos foi só entre os Gregos que se realizou esta transição do mito para a filosofia) nada mais fizeram do que repetir as lições do mito numa terminologia modificada. Torna-se assim talvez necessário lembrar, primeiro, que, pelo que toca aos Iônios, este ponto é tratado no princípio do capítulo X e, segundo, que (como se salienta no capítulo I) a especulação milesiana não representa de modo algum a totalidade do empreendimento levado a cabo pelo pensamento científico grego primitivo. Há ainda a tradição médica, prática quanto à sua finalidade, experimental nos seus métodos, que pouco a pouco constituiu um corpo de conhecimentos sistemáticos, baseados na observação repetida dos factos e abertamente hostil às afirmações mais dogmáticas dos filósofos.” (p. 425)
loa estou fazendo um trabalho sobre o pensamento filosófico de Demócrito e Leucipito por favor me envie algum material se vc tiver . obrigado
Klaus, há muita coisa em inglês online, você lê inglês? Com certeza encontrará também em português na web.
filosofos nao faziam experiencias nem ciências como fazem hoje
Olá, gostei muito da resenha. Interessei-me pelo Cornford e gostaria de saber se tem algum material em português para me ajudar a conhecê-lo melhor.
Julianna, certamente há bastante coisa do e sobre o Cornford em língua portuguesa, sugiro uma pesquisa no google acadêmico.
Obra excelente !