Inconsciente – Leibniz

O ‘racionalista’ Leibniz (1646-1716) fornece, em várias passagens de sua obra, descrições muito bonitas sobre o inconsciente, mesmo sem usar a palavra. Nesse sentido, ele pode ser posicionado na pré-história da Psicologia.

existe uma série de indícios que nos autorizam a crer que existe a todo momento uma infinidade de percepções em nós, porém sem apercepção e sem reflexão: mudanças na própria alma, das quais não nos apercebemos, pelo fato de as impressões serem ou muito insignificantes e em número muito elevado, ou muito unidas, de sorte que não apresentam isoladamente nada de suficientemente distintivo; porém, associadas a outras, não deixam de produzir o seu efeito e de fazer-se sentir ao menos confusamente. (p. 11-12)

Temos, portanto, percepções das quais não nos damos conta em muitas situações, “pequenas percepções que somos incapazes de distinguir em meio à multidão delas” (p. 12). Elas são desviadas pela sua multidão que divide o nosso espírito ou apagadas e obscurecidas pelas percepções maiores (p. 84).

Essas pequenas percepções, devido às suas consequências, são por conseguinte mais eficazes do que se pensa. São elas que formam esse não sei quê, esses gostos, essas imagens das qualidades dos sentidos, claras no conjunto, porém confusas nas suas partes individuais, essas impressões que os corpos circunstantes produzem em nós, que envolvem o infinito, esta ligação que cada ser possui com todo o resto do universo.

Essas pequenas percepções operam também a todo momento:

ocorrem-nos pensamentos involuntários, em parte de fora, pelos objetos que atingem os nossos sentidos, em parte dentro de nós devido às impressões (muitas vezes insensíveis) que restam das percepções precedentes que continuam a sua ação e que se mesclam ao que vem de novo. Somos passivos quanto a isso, e mesmo quando estamos em vigília; imagens (sob as quais compreendo não somente as representações das figuras, mas também as dos sons e de outras qualidades sensívies) nos ocorrem, como nos sonhos, sem serem chamadas. A língua alemã as denomina fliegende Gedanken como quem dissesse pensamentos volantes, que não estão sob o nosso poder, e nos quais existem por vezes muitos absurdos que produzem escrúpulos às pessoas de bem e quebra-cabeças aos casuístas e diretores de consciência. É como uma lanterna mágica que faz aparecer figuras na muralha à medida que se gira alguma coisa dentro. [...] Além disso, o espírito entra, como bem lhe parecer, em certas progressões de pensamentos que o conduz a outras.” (p. 127-128).

O inconsciente para Leibniz não se resumiria a percepções e impressões, mas também a desejos que nos movem: “inclinações imperceptíveis à parte, cujo acúmulo constitui uma inquietação, que nos impulsiona sem que vejamos o motivo.” (p. 139).

E é o inconsciente também que, de alguma maneira, dá o colorido para o nosso mundo: “as pequenas percepções insensíveis produzem em nós essa inquietação [...] que constitui muitas vezes o nosso desejo e o nosso prazer, dando a estes, por assim dizer, um sal picante.” (p. 13).

Essas pequenas percepções de que não nos apercebemos acabam construindo nosso mundo e a nós mesmos, como pessoas:

Essas percepções insensíveis assinalam também e constituem o próprio indivíduo, que é caracterizado pelos vestígios ou expressões que elas conservam dos estados anteriores deste indivíduo, fazendo a conexão com o seu estado atual (p. 13)

Esta imagem sugere que é o inconsciente que realiza as conexões entre nossos estados mentais singulares sucessivos, garantindo assim nossa identidade como pessoas, nossa continuidade como indivíduos e até mesmo nossa memória: “Aliás, essas pequenas percepções possibilitam até reencontrar esta recordação, se necessário, através de evoluções periódicas que podem ocorrer um dia.” (p. 13).

Enfim, material riquíssimo para quem quiser retraçar a história do inconsciente, e mesmo para quem quiser conceituá-lo mais precisamente. Tudo isso, é bom lembrar, muitos e muitos anos antes de Freud.

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Novos ensaios sobre o entendimento humano. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Col. Os Pensadores)

FacebookTwitterGoogle+Compartilhar
Esta entrada foi publicada em Filosofia, Psicologia. Adicione o link permanenteaos seus favoritos.

17 respostas a Inconsciente – Leibniz

  1. Ferdinand disse:

    De Mattar
    O seu texto sobre o Leibniz só fez aumentar o gigantismo do mesmo.
    Não bastava ter inventado o cálculo diferencial independentemente do de Newton, é a notação dele que persiste como default nos textos de hoje.
    Grato pelo prazer da leitura.

  2. João Mattar disse:

    Ferdinand, realmente é impressionante como ele fala de uma forma interessante sobre o inconsciente, mesmo sem usar a palavra, e há tanto tempo.

  3. T disse:

    oi João,
    acho que não falava por conta das repressões seculares!creio eu!
    mas o que vc escreveu sobre a não utilização da palavra pode servir de exemplo de que o significante surge sempre antes do significado ou não?!

  4. T disse:

    Complementando assim o que escreveu em ” Neves” e “Semântica” ….?!

  5. João Mattar disse:

    No caso aqui o significado teria surgido antes. É que o inconsciente é um termo mais da psicologia moderna, nesta época ainda não temos a psicologia como ciência distinta. Mas as descrições do Leibniz para o conceito são, na minha opinião, às vezes mais ricas e interessantes que as do próprio Freud.

  6. T disse:

    sim, entendi, nomear aquilo que ainda era inominável, então ele chama, pelo que está no texto, ” percepções” .

  7. João Mattar disse:

    Percepções sem apercepção e reflexão, pequenas percepções, percepções insensíveis etc.

  8. Ferdinand disse:

    Tenho visto em livros de neurociência que a quantidade de “informação” que adentra nossa mente, mas via inconsciente ( isto é não diretamente apercebida) é absolutamente fantástica. O nosso consciente não é como se fosse apenas a ponta aparente do iceberg, mas “um” cristal de gelo no topo de uma geleira das grandes. Nesse contexto pequenas percepções não correlacionam com percepções insensíveis ( não conscientes).
    Tem muita coisa nova emergindo neste campo, mas a filosofia permanece.

  9. João Mattar disse:

    Ferdinand, o Nietzsche é outro que fala de maneira muito rica e bonita sobre o inconsciente: “o homem, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não sabe disso; o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a parte mais superficial”

  10. Pedro Moreira de Godoy disse:

    Hummm… João! Nada mais perfeito para essa época do ano, onde estamos, na grande maioria de nós, a fazer uma reflexão sobre o ano que passou e as mudanças que desejamos para o próximo ano. Explorar o inconsciente, à luz de Leibniz, é a porta de entrada para um universo de sons e de cores… fiquei extasiado. Isso só reforça a minha tese de que aprendemos, e apreendemos, muito com o outro à nossa volta, justamente por causa dessas percepções, muitas vezes indecifráveis. E isso me remeteu a um questionamento… “Se no contato com o outro, nossa mente, nosso corpo, capta muito do que nos move, nesse movimento inconsciente, e isso contribui em muito para nos tornar o que somos, ou seja, nos educamos no convívio com o outro… como se daria isso na EaD?” Há que se pensar!

  11. João Mattar disse:

    Pedro, para variar, excelente provocação: como pensar o papel do inconsciente na EaD, repleta de textos, imagens, sons, animações, vídeos etc.? Genial, quem já pesquisou isso? O objetivo da pesquisa seria aperfeiçoar o design educacional e a interação, levando em consideração o inconsciente.

  12. Pedro Moreira de Godoy disse:

    João Mattar, hum rum, isso mesmo! Como possibilitar que a interação dos ambientes virtuais de aprendizagem seja mais socializante e permita que os sujeitos da aprendizagem aprendam no convívio com o outro, sabendo que existe uma ação do inconsciente na formação de nossas idéias… acho que o ponto de partida seria entender como essas informações nos influencia, de forma subliminar. Mas por trás disso existe uma indagação: “A percepção humana fica reduzida nos contatos virtuais mas até que ponto isso reduz a captação dessas mensagens inconsciente dos outros com quem interagimos?”

  13. T disse:

    Não se pode ir tão rápido, digamos, avançado, é uma opinião, pois, não falo nem do inconsciente, falo das ditas percepções, é necessário ser sensível a esta sensibilização, e só a cultura e o convívio em um desejo muito profundo (humanizado) perante as falhas dos outros poderá fazer surgir esta ponta do iceberg.
    Mesmo no presencial este contato com o outro foi relegado a um segundo plano, não gostaria de ser chamada de ” utópica” .
    Ainda ontem pensei em Merleau-Ponty, e na verdade nem todos se dedicam a ler e refletir como vc, nesta junção filosófica em tentativas de trascrever filosoficamente para a experiência da EaD o que nem muitos ou alguns poucos refletem na vida, se não cotidiana, no mínimo em etapas de vida.
    A isso chamo utopia, sou descrente portanto! desculpe!
    Mas fico contente de q lançe ideias, afinal, tens um percurso que deve ser trilhado assim, na investigação.Deixo aqui frases soltas….. não sou expert, deveria ler mais!Mas se falamos de inconsciente, o meu levou-me a Merleau-Ponty
    ” Na perspectiva de Husserl que Merleau-Ponty[também adopta tudo o que conhecemos do mundo, sabemo-lo através da nossa própria vivência, da nossa experiência singular; mesmo na ciência, o universo que esta constrói é edificado sobre as nossas vivências e as nossas experiências. ”
    Ou ” …constitui um elemento decisivo na orientação do seu projecto filosófico que visa dilucidar a experiência do ser humano no mundo; a familiaridade que com ele vive acaba por esconder e esquecer a intrínseca opacidade da relação homem-mundo, isto é, da percepção.”
    Não gosto de sonhos… bla, bla, blá..

  14. João Mattar disse:

    Pedro, talvez possamos dizer que nossas percepções se alteram em EaD, e por consequência a relação com o nosso inconsciente talvez tenha que ser pensada de uma maneira também diferente, esse foi o interessante insight da sua provocação. T, tenho defendido faz tempo a necessidade de desenvolvermos uma filosofia da EaD, inclusive para diminuirmos os abismos que nos separam dos estudiosos da educação presencial.

  15. Pedro Moreira de Godoy disse:

    João Mattar, quem faz as provocações aqui é você… sempre nos surpreendendo com temas inusitados. Eu jamais esperaria pensar na importância do inconsciente na formação do meu ser se eu não tivesse lido este teu ensaio sobre o Leibniz. Acredito que eu precise ler mais… acho que desejo isso para mim em 2011… comprei uma série de livros de Niccolò Di Bernardo Machiavelli (Il Principe) e andei lendo Parmenides de Eléia… quem sabe um dia não adquiro essa cultura que tanto me faz falta para compreender na sua totalidade as tantas provocações filosóficas que você nos apresenta. Feliz 2011, meu caro amigo!

  16. João Mattar disse:

    Pedro, não sei se você sabe, mas uma das minhas graduações é em Filosofia. Meu doutorado, mesmo tendo sido em Letras, utilizou como referências muito de psicologia e filosofia. E tenho algumas publicações na área, neste ano mesmo o “Introdução à Filosofia”, que ficou muito legal. Andei produzindo uma disciplina online de filosofia e nos próximos meses estarei produzindo mais material para filosofia em EaD, então teremos mais provocações por aqui. Feliz 2011, amigão, e espero revê-lo no ano que vem. Aliás, logo mais anuncio algumas novidades bem legais por aqui, com certeza nos encontraremos muitas vezes, mesmo que virtualmente.

  17. Delzenil disse:

    Achei muito importante! Eu não sabia, pensava que Freud foi o primeiro humano a des-cobrir o lado obscuro da mente.

Deixe uma resposta para João Mattar Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

*

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <strike> <strong>