A Filosofia do Iluminismo

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CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Trad. Alvaro Cabral. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994. (Coleção Repertórios). Resenha de João Mattar.

Passei o ano lendo meu exemplar bem antigo deste clássico sobre o Iluminismo. Li com mais atenção o Prefácio e os 3 primeiros capítulos, espero em outro momento voltar aos capítulos seguintes com mais calma.

No Prefácio, ao Iluminismo é associada a proposta de uma filosofia com mais liberdade e mobilidade, mais concreta e viva do que um sistema metafísico ou a filosofia entendida como simples reflexão. Cassirer lembra também que o Romantismo fez uma leitura negativa do Iluminismo, cuja filosofia teria sido considerada trivial.

No Cap. I. O Pensamento na Era do Iluminismo, o filósofo alemão ressalta que o Iluminismo teve forte interesse na razão e em como se dá o progresso intelectual. Mas isso ocorre de uma maneira peculiar: Newton teria sido preferido em detrimento de Descartes, assim como a física moderna em relação à filosofia. Os iluministas dão mais valor às ciências modernas do que à tradição filosófica. Não lhes interessa mais apenas a dedução, mas principalmente a observação e a experiência, o que teria levado a uma revisão na teoria do conhecimento, com os interesses se deslocando dos princípios em direção ao particular e aos fenômenos, o que já vinha se desenhando no século passado. Nesse longa passagem, Cassirer reflete sobre o novo conceito de razão que se estabelece no período:

A potência da razão humana não está em romper os limites do mundo da experiência a fim de encontrar um caminho de saída para o domínio da transcendência, mas em ensinar-nos a percorrer esse domínio empírico com toda a segurança e a habitá-lo comodamente. Uma vez mais, manifesta-se aqui a mudança de significação característica que a ideia de razão sofreu em relação ao pensamento do século XVII. Para os grandes sistemas metafísicos seiscentistas, para Descartes e Malebranche, para Spinoza e Leibniz, a razão é a região das “verdades eternas”, essas verdades que são comuns ao espírito humano e ao espírito divino. O que conhecemos e do que nos apercebemos à luz da razão é “em Deus”, portanto, que o vemos imediatamente: cada ato da razão assegura-nos a nossa participação na essência divina, franqueia-nos o acesso ao domínio do inteligível, do supra-sensível puro e simples. O século XVIII confere à razão um sentido diferente e mais modesto. Deixou de ser a soma de “ideias inatas”, anteriores a toda a experiência, que nos revela a essência absoluta das coisas. A razão define-se muito menos como uma possessão do que como uma forma de aquisição. Ela não é o erário, a tesouraria do espírito, onde a verdade é depositada como uma moeda sonante, mas o poder original e primitivo que nos leva a descobrir, a estabelecer e a consolidar a verdade. Essa operação de assegurar-se da verdade constitui o germe e a condição necessária de toda a certeza verificável. É nesse sentido que todo o século XVIII concebe a razão. Não a tem em conta de um conteúdo determinado de conhecimentos, de princípios, de verdades, preferindo considerá-la uma energia, uma força que só pode ser plenamente percebida em sua ação e em seus efeitos. A sua natureza e os seus poderes jamais podem ser plenamente aferidos por seus resultados; é à sua função que cumpre recorrer. E a sua função essencial consiste no poder de ligar e de desligar. A razão desliga o espírito de todos os fatos simples, de todos os dados simples, de todas as crenças baseadas no testemunho da revelação, da tradição, da autoridade; só descansa depois que desmontou peça por peça, até seus últimos elementos e seus últimos motivos, a crença e a “verdade pré-fabricada”. Mas, após esse trabalho dissolvente, impõe-se de novo uma tarefa construtiva. É evidente que a razão não pode permanecer entre esses disjecta membra; deverá construir um novo edifício, uma verdadeira totalidade. Mas ao criar ela própria essa totalidade, ao levar as partes a constituírem o todo segundo a regra que ela própria promulgou, a razão assegura-se de um perfeito conhecimento da estrutura do edifício assim erigido. Ela compreende essa estrutura porque pode reproduzir-lhe a construção em sua totalidade e no encadeamento de seus momentos sucessivos. É mediante esse duplo movimento intelectual que a ideia de razão se concretiza plenamente: não como a ideia de um ser mas como a de um fazer. (p. 31-33)

No Cap. II. Natureza e Ciência da Natureza na Filosofia do Iluminismo, Cassirer aponta que a filosofia iluminista entra em conflito com a Igreja, já que propõe uma nova noção de verdade, que não é mais a verdade revelada pelas escrituras, mas pela matemática e pela física. Desenvolve-se no período a crença de que é possível conhecer os segredos da natureza, quebrando-se assim os vínculos entre teologia e física. Interessa aos iluministas observar e determinar as relações entre os fenômenos, e não seus princípios ou suas origens primeiras; descrever, mas não explicar. A ciência se afasta, assim, dos princípios metafísicos e das relações da natureza com Deus, ou seja, se afasta da metafísica e da teologia.

Que se descarte essa questão de “transcendência” e a natureza deixa instantaneamente de ser um mistério. Não é a sua essência que é misteriosa ou incognoscível, foi o espírito humano que lançou sobre ela uma obscuridade artificial. (p. 99)

As novas ciências começam então a elaborar seus próprios métodos, não dependendo mais da metafísica e da filosofia. Nesse sentido, a base para as ciências não é agora mais apenas a matemática e a geometria, como no caso do racionalismo, mas a física. A indução (Newton/Hume) substitui a dedução (Descartes):

Aquele que não se contenta com esse mundo visível, que indaga as causas invisíveis dos efeitos visíveis, não age mais sabiamente, segundo Diderot, do que um camponês que atribuísse o movimento do seu relógio, cujo mecanismo não entende, a um ser espiritual escondido em seu interior. (p. 101)

Cassirer destaca também a importância da biologia, fisiologia e medicina na época.

No Cap. III. Psicologia e Teoria do Conhecimento, o filósofo alemão mostra como os dois campos de conhecimento se misturam no Iluminismo. A psicologia passa a ser considerada um campo prévio às sensações: a vontade, a atenção, o interesse, a utilidade etc. determinam a maneira como conhecemos. Memórias, ideias etc. são determinadas pelo nosso interesse e pela nossa vida psíquica. A ordem lógica não é primária, é um reflexo da ordem biológica, do nosso interesse e do que é útil para nós. Nesse sentido, há uma elevação da importância das paixões em relação à razão, em comparação com o racionalismo:

o pensamento que prevalece é, de fato, o de que é impossível apreender e determinar pelas paixões a “natureza” da alma. Essa natureza reside no “pensamento” e só no pensamento encontra sua marca verdadeiramente característica. É a representação, a ideia clara e distinta, não a paixão obscura e confusa, que caracteriza, por conseguinte, a natureza da alma. Os instintos, os desejos, as paixões sensíveis só indiretamente lhe pertencem. Não estão aí suas propriedades originárias e seus movimentos próprios mas perturbações que experimenta, oriundas do corpo, de sua junção com o corpo. A psicologia e a ética do século XVII fundem-se essencialmente nessa concepção das paixões como fenômenos de inibição e perturbação, como perturbationes animi. Somente possui valor ético o ato que domina essas “perturbações”, que manifesta a vitória da parte ativa da alma sobre a parte passiva, a vitória da “razão” sobre as paixões. Essa perspectiva estoica não caracterizava somente a filosofia do século XVII; ela impregna toda a vida espiritual dessa época. [...] A vontade racional dominando os impulsos dos sentidos, os instintos e as paixões, tais são o sinal e a essência da liberdade do homem. O século XVIII não se detém num critério tão negativo, numa apreciação tão negativa das paixões. Longe de ver aí uma simples inibição, procura o impulso originário indispensável da vida da alma. (p. 149-150)

Nesse processo, a filosofia de Hume teria sido essencial:

O ceticismo crítico de Hume leva, no domínio da psicologia, a uma inversão de critérios cuja validade era até então incontestada. É, em suma, a inversão do inferior e do superior: mostra que a razão que se costuma honrar como a faculdade soberana do homem desempenha afinal um papel inteiramente secundário no conjunto da vida psíquica. Ela exerce tão escassos poderes na direção das faculdades “inferiores” da alma que não se cansa, pelo contrário, de recorrer a elas, e não saberia dar um só passo sem a colaboração da sensibilidade e da imaginação. Todo o saber racional se reduz exclusivamente à inferência da causa a partir da observação do efeito; ora, essa inferência, em si mesma, é justamente aleatória, incerta, e jamais poderá ser estabelecida por via puramente lógica. Para ela só existe a justificação indireta, aquela que consiste em descobrir sua origem psicológica, em reconduzir à sua origem a crença na validade do princípio de causalidade. Verifica-se então que essa “crença” não se fundamenta, de maneira alguma, em princípios racionais universais e necessários mas provém de um simples “instinto”, de uma pulsão primitiva da natureza humana. Esse instinto é, em si mesmo, cego; mas é justamente nessa cegueira que consiste a sua força essencial, a potência pela qual ele impõe-se a todo o curso de nossas ideias. Hume parte desse resultado teórico para sistematicamente estender a todo o domínio do psíquico o processo de nivelamento por ele iniciado. (p. 150-151)

Hume teria realizado o mesmo movimento em suas críticas à religião: seus princípios não seriam ideias inatas ou intuições primitivas, mas o sentimento do medo, o que tampouco poderia ser reconstruído por argumentos puramente lógicos e racionais.

Nossos sentidos são múltiplos e as conexões entre as percepções ocorrem em função do hábito, não de ideias ou conceitos inatos:

Cada sentido tem o seu próprio mundo, resta apenas compreender e analisar todos esses mundos de maneira puramente empírica, sem tentar reduzi-los a um denominador comum. A filosofia do Iluminismo não se cansará de recordar essa relatividade. (p. 162)

Lógica, teologia e moral tornam-se assim dependentes de uma antropologia.

No Cap. IV. A Ideia de Religião, Cassirer aborda as diversas críticas realizadas à religião no período.

No Cap. V. A Conquista do Mundo Histórico, ele explora a importância que a História adquire no Iluminismo.

O Cap. VI. O Direito, o Estado e a Sociedade explora como a filosofia política e moral vão deixando de ser estudadas por métodos apriorísticos e passam a ser exploradas pelo método empírico. Assim, passamos do direito natural ao direito dos homens e dos cidadãos. Boa parte do capítulo é uma análise das ideias de Rousseau.

No Cap. VII. Os Problemas Fundamentais da Estética, Cassirer destaca a importância da crítica estética e literária no século XVIII. A noção de força criadora, representada nas ciências e nas artes, superaria a concepção de mero acúmulo de sensações em ideias, característica tanto do racionalismo quanto do empirismo.

No texto são estudados os mais diversos autores, como por exemplo: Etienne Bonnot de Condillac (1715-1780), Claude Adrien Helvétius (1715-1771), Pierre Louis Moreau de Maupertuis (1698-1759), Denis Diderot (1713-1784) e Johann Nikolaus Tetens (1736-1807). Cassirer faz questão também de registrar as diferenças entre as filosofias inglesa, francesa e alemã.

O livro não tem Bibliografia, mas apenas notas ao final de cada capítulo. Enfim, uma tradução esgotada, que deixa de traduzir muitas expressões ou passagens em outras línguas, de um texto denso mas importante para compreender melhor a filosofia do Iluminismo, publicado originalmente em 1932.

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4 respostas a A Filosofia do Iluminismo

  1. Ferdinand disse:

    Prezado Mattar
    Não tinha percebido a existência do Ernst Cassirer, sou de exatas um tanto quanto antigas. Vez por outra me aventuro, por puro prazer no Schpenhauer e no Popper, mas são apenas gotículas no sereno.

    Agora com a maravilha da rede fui conferir.
    Me caíu em tela a primeira página (introdução, na verdade) de Freiheit und Form: Studien zur deutschen Geistesgeschichte (1918).
    Que bizarro! Em gótico!
    É barra tentar ler, quando tens que decifrar letra por letra, símbolo por símbolo.
    Sem qualquer condição, tentar adentrar por aí.

    Para me vingar lí rápidamente o “Cassirer: a filosofia das formas simbólicas” de Vladimir Fernandes, que tenho a impressão de não ter entendido.

    Bem.
    Campo novo é assim mesmo.
    Primeiro vem a confusão.
    Mas chamou atenção.

  2. João Mattar disse:

    Ele é conhecido como representante do neokantismo ou neocriticismo, movimento que pregou o retorno a Kant, principalmente em reação à filosofia de Hegel. É autor também de “Antropologia Filosófica” e “Filosofia das Formas Simbólicas”, dois clássicos. Realmente não é um autor fácil de ler.

  3. Igor Azevedo Madeira disse:

    Oi o Sr venderia o livro???
    Se quiser compro ele
    Grato

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