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A Teoria da Administração começa com Henry Ford (1863-1947), fundador da Ford Motor Company, que aperfeiçoou a linha de montagem e desenvolveu a produção em massa de automóveis, no início do século XX, aumentando a quantidade e diminuindo o custo. Os carros, assim, deixaram de ser artigo de luxo e passaram a ser oferecidos ao público consumidor a um preço acessível.
Mas, já a partir de 1923, Alfred Sloan aperfeiçoou a linha de montagem de automóveis na General Motors, principalmente através de novas estruturas organizacionais descentralizadas e da diversificação da linha de produtos.
Ora, mas você deve estar pensando: o que isso tem que ver com EaD?
A EaD começou tentando copiar a linha de montagem de Ford: processo de trabalho fragmentado (cada um fazia um pouquinho, o conteudista, o pedagogo, o webdesigner – com quem ninguém conseguia conversar, o tutor – que já recebia tudo pronto etc.), centralização excessiva, falta de participação nas decisões, material e atividades pré-produzidos, impostutores-palhaços (que deviam apenas agir passivamente), ou seja, falta de criatividade no produto, no processo e na estrutura organizacional. Produção em massa de educação, como em uma indústria do século XIX.
Já se fala numa geração neo-Fordista na EaD, em que o produto e o processo tornaram-se mais flexíveis (mas a centralização ainda continuou intensa, ou seja, os tutores continuaram a ter pouca autonomia e responsabilidade), e também pós-Fordista (em que tudo se flexibilizou em função do aluno, acompanhando a tendência da Administração contemporânea).
Um exemplo muito interessante, nesse sentido, foi a recente reformulação do departamento de EaD da Unisinos, do qual já falei aqui no meu blog. Um show de trabalho: o departamento de EaD deixa de ser um departamento elitista, o centro de produção de conteúdo online da instituição, para se transformar em centro de treinamento para (todos) os professores, que agora podem produzir e modificar seus conteúdos livremente, durante o próprio curso. Para os professores, isso funciona também como um upgrade nas suas carreiras, já que eles aprendem dentro da instituição softwares e técnicas que poderão usar para sempre, em sua vida profissional. Os alunos, não é preciso dizer, são beneficiados. Mas e a instituição, tem prejuizo? Que nada, o departamento de EaD passa agora a dar consultoria e produzir conteúdo para clientes de fora, torna-se uma Unidade de Negócios. Professores (todos), departamento e instituição ganham mais, assim como os alunos e toda a sociedade.
Agora, meu querido e-leitor, imagine (de mentirinha) um departamento que dissesse fazer EaD em pleno século XXI, da seguinte maneira:
1) Reformula seu Projeto de EaD sem consultar nem contar com a participação de seus professores;
2) Continua a centralizar todas as decisões em um Departamento (que praticamente não tem professores!), sem delegar responsabilidades;
3) Apresenta, como base teórica de seu projeto (de EaD!), Skinner, Piaget e Vygotsky, só, isso mesmo, ignorando Michael Moore, Otto Peters, Keegan, Renner etc;
4) Transforma seus conteúdos, que até tinham um pouquinho de multimídia, em simples arquivos pdfs (“mais apostilas para ler”, como dizem os alunos);
5) Impõe esses pdfs para todas as disciplinas, como um currículo pré-definido que o tutor deve seguir, independente do seu público-alvo;
6) Define também de antemão (não é brincadeira) as atividades, os prazos de entrega das atividades e os critérios de avaliação; e, inclusive, programa mais atividades individuais (isoladas) do que de interação entre alunos e tutor;
7) Orienta os tutores para não marcarem encontros presenciais com seus alunos, mesmo quando eles e os alunos assim queiram;
8) Solicita que os tutores atuem passivamente, sob demanda;
9) Engana os professores que dão aulas presenciais na mesma instituição, porque transforma diversas disciplinas presenciais em online (e assim vários professores perdem aulas), dizendo que eles poderão atuar agora de outra maneira, mais “criativa”;
10) Por causa disso, várias turmas presenciais são “juntadas” e as classes ficam com até mais de 100 alunos (ou seja, professores que antes davam aulas para duas turmas, agora dão uma só aula – ganhando metade do que antes – para praticamente as mesmas duas turmas – não cabe na sala de aula, é impossível dar aula e o resto da história você já imagina…);
11) Engana ainda mais seus professores, quando afirma que todos no departamento de EaD (que agora inclui um monte de interessados, vários professores que perderam aulas presenciais) sairão ganhando, porque o número de alunos aumentou em x%;
12) Completa o engano quando transforma turmas online que costumavam ter 40, 50 ou mais alunos (o que já era muito!), e aloca agora até 100 alunos por turma, pagando 3 horas-aula por semana para cada tutor – que antes recebia 4 para lidar com 40 alunos ou um pouco mais (não é brincadeira), ou seja, o tutor não tem agora nem 2 minutos de atenção para despender com cada aluno, mas precisa corrigir atividades (individuais), mandar emails, participar de fóruns, passar as notas para o sistema etc., tudo em menos de 2 minutos!;
13) Realiza um treinamento com vários candidatos a tutores, e no meio do treinamento escolhe aqueles que serão os tutores durante o semestre, mas não se digna nem mesmo a comunicar aos professores que estão sendo treinados que já foi feita uma escolha etc. etc.;
14) Sobrecarrega seus monitores, que continuam no mesmo número, ganhando a mesma coisa, apesar do grande aumento de alunos e disciplinas;
15) Simplesmente responde, quando é ligeiramente questionado sobre qualquer um desses pontos, ou mesmo sobre outros: quem não gostar do projeto, tá fora!
16) E, quando alguém questiona um pouco mais, é demitido ou desvinculado do departamento de EaD;
17) Não se preocupa nem em fazer uma apresentação das disciplinas online para seus alunos, explicando como as coisas vão funcionar, nem mesmo para seus alunos calouros, que têm poucos dias para optar entre cursar determinada disciplina a distância ou presencial, mas ainda não estão nem mesmo aculturados à instituição;
18) Há ainda um problema com o pagamento feito pelos seus alunos (ou por nós todos, via ProUni), pois eles pagam matrícula e mensalidade mas só começam a ter aula 1 mês depois, já que no primeiro mês de aulas não tem aula online!
19) E, por fim (não é brincadeira, não é brincadeira), não paga os professores durante esse primeiro mês – em que não houve aulas mas os alunos pagaram (deve ter sido apenas um engano!).
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Ou seja, um modelo sem flexibilidade no produto nem no processo, sem responsabilidade, sem foco no cliente, centralizador: pré-Fordismo! Um modelo para matar a criatividade, para impossibilitar a inovação.
Supostamente (supostamente, porque disso podemos falar depois com mais calma, outro engano, outro erro, alguém deve estar sendo enganado por planilhas – mas é só ler A Ilusão das Estatísticas) para gerar mais lucros. Porque, e se o marketing funcionar ao contrário? Se a comunidade acadêmica descobrir tudo isso? Se os alunos se conscientizarem do que está acontecendo? Se os professores reagirem? Mas, mesmo que nada disso aconteça, é muitíssimo questionável que esse modelo seja mais lucrativo: uma reestruturação como a da Unisinos trouxe mais qualidade para a educação associada a lucro.
Vote e-leitor: isso é educação a distância? Ou educação… a distância, a muita distância…, a anos-luz de distância…?
Ou, uma pergunta ainda mais filosófica, isso é Educação?
Que compromisso esse projeto e esse departamento têm com a educação, com seus professores e com seus alunos?
Que senso crítico, que visão crítica da realidade um aluno assim formado poderá ter? Que ser humano estaremos formando baseado neste modelo?
Surrealista? Ainda bem que foi só uma brincadeira, lembra? Ufa! Se algum dia isso acontecer, é preciso reagir. Não podemos ficar de cabeça baixa. Alguém precisa ser responsabilizado.
Meu grande professor de violão me dizia: tudo o que a gente leva anos e anos para construir, com muito esforço, pode ruir num instante.
Lucro e educação não é uma combinação natural, mas à distância eles não têm sentido.
Quando não temos certeza de alguma coisa, devemos que tomar cuidado com o que falamos. Mas, nas poucas vezes em que temos certeza, em que conseguimos enxergar as coisas com clarividência, temos então que lutar muito por aquilo em que acreditamos, mesmo com o risco de descobrirmos depois que estávamos errados. Quanto mais certeza na leitura da realidade, mais temos que expor nosso pensamento e lutar. Este é o principal ensinamento que podemos deixar para as próximas gerações. Afinal, somos professores!