É incrível como algumas leituras não fazem sentido em determinados momentos de nossa vida, mas adquirem um sentido iluminador em outros.
Como ando dizendo, tenho me interessado ultimamente por teorias com as quais nunca simpatizei muito, como as de que a educação deve ser obrigação do Estado (e não um problema que deveria ser deixado para a iniciativa privada e o mercado resolverem) e que a educação deve ser encarada como uma questão de soberania nacional (e, portanto, não aberta ao investimento estrangeiro). Aliás, Adalberto, você que já andou pincelando sobre isso aqui e ali, por favor nos brinde com um reflexão sobre essas teorias, e mesmo com as sempre preciosas indicações bibliográficas que você costuma nos trazer.
Independentemente do discurso ultrapassado que caracteriza muitas dessas teorias, ando empenhado em descobrir o que elas têm a nos ensinar, quando refletimos sobre a educação contemporânea e, principalmente, sobre o que está acontecendo com a EaD.
Então, voltei ao nosso internacional Paulo Freire. E estou surpreso com os ensinamentos – extremamente atuais – que tenho conseguido extrair desse apaixonado educador.
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Em seu clássico Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire define uma concepção ‘bancária’ da educação, que o Pedro muito sabiamente tem utilizado em suas análises de EaD – escreva um texto sobre o tema, Pedro, ‘A EaD bancária’, que eu posto por aqui. A educação bancária implica a memorização mecânica de conteúdos, transformando os educandos em ‘vasilhas’, recipientes que deveriam ser ‘enchidos’ pelo educador:
“Quanto mais vá ‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente ‘encher’, tanto melhores educadores serão.” (p. 66).
A educação, assim, torna-se um ato de depositar; de narrar, transferir e transmitir conhecimentos. Um modelo que, infelizmente, caiu como uma luva em muitos projetos de EaD, principalmente quando a educação fica nas mãos de investidores, do mercado financeiro (Universidade ou Banco? é um dos tópicos deste fórum). Será que Paulo Freire conseguiu imaginar o poder profético de sua metáfora? Os educandos devem receber, repetir, memorizar, guardar e arquivar conteúdos. A educação bancária seria, portanto, uma prática de dominação, não de libertação.
A esta concepção bancária de educação, antidialógica por natureza, Freire contrapõe a educação humanista e problematizadora, que pressupõe o diálogo, mesmo que este se realize sobre a negação do próprio diálogo. Ou seja, interação é necessária para que se concretize a educação e a aprendizagem, inclusive em EaD, se queremos pensar a EaD como uma modalidade de educação. Educação a Distância não pode significar Educação… a Distância, a anos luz de distância. Daí porque a teoria da Distância Transacional, de Michael Moore, é importante em EaD: apesar da distância física, é possível administrar a distância da transação com projetos pedagógicos efetivamente interessados na aprendizagem, e não apenas em ganhar dinheiro. Em EaD, o educando não precisa estar distante, pedagogicamente, dos seus educadores, nem de seus colegas, muito menos do mundo que contextualiza seu aprendizado.
A educação dialógica pressupõe que os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Segundo Paulo Freire, é justamente através do diálogo que o educador problematizador re-faz constantemente seu ato cognoscente na cognoscibilidade dos educandos:
“Na medida em que o educador apresenta aos educandos, como objeto de sua ‘ad-miração’, o conteúdo, qualquer que ele seja, do estudo a ser feito, ‘re-ad-mira’ a ‘ad-miração’ que antes fez, na ‘ad-miração’ que fazem os educandos.” (p. 80)
Esta passagem me fez lembrar de um email que recebi recentemente de uma aluna:
“Só queria dizer que estou adorando suas aulas. Nunca estudei muito Filosofia, mas vendo um professor tão apaixonado pelo tema, está me deixando curiosa.”
Ad-mirar implica paixão, amor pelo objeto de estudo. Um tutor que é obrigado a ‘educar’ com conteúdos e atividades pré-programadas certamente não será capaz de ‘ad-mirar’ o objeto de estudo que deve ‘transmitir’ a seus educandos. Aquele é um recorte do mundo artificial, do qual ele não compartilha, que ele não enxerga, não consegue ad-mirar. Então, o circuito não se completa, porque não há tampouco ad-miração dos educandos, muito menos re-ad-miração da parte do tutor.
E Freire continua, sempre com bonitas imagens, como as de imersão e emersão:
“Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica num constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte a inserção crítica na realidade.” (p. 80).
O diálogo, segundo Freire, pressupõe o amor ao outro (e, como já disse por aqui, lembrei disso no caso do Liviu Librescu, que escapou do holocausto para morrer protegendo seus alunos na Virginia Tech). Sem diálogo não há comunhão; sem comunhão, não há educação. Educar (e ser educado) é um ato de co-laborar: trabalhar em conjunto. Assim, enquanto a educação bancária está associada à idéia de um programa, a educação problematizadora está associada à idéia do diálogo. Como costuma dizer o professor Wilson Azevedo, em relação à EaD em que ele acredita, o texto torna-se apenas um pretexto para motivar o diálogo. Por outro lado, os modelos que não prezam o diálogo precisam insistir na estrutura: reforço dos níveis hierárquicos (mais coordenadores…) e da centralização das decisões (quem não concordar, está fora!), conteúdo pré-programado, atividades pré-programadas, predomínio de atividades individuais em relação às interativas, a decretação da falta de sentido para o conceito de ‘turma’ (O CONCEITO DE TURMA EM EaD: SANGUE LATINO) etc., todos temas que vimos discutindo por aqui. Ford e a EaD seria uma variação para Educação Bancária e a EaD, que o Pedro vai escrever.
O profeta Paulo Freire destaca ainda que a ação dominadora nem sempre é exercida deliberadamente, pois os reprodutores da dominação são, muitas vezes, eles mesmos homens dominados. O reprodutor da dominação pode ser tanto um invasor quanto um invadido cultural:
“‘Hospedeiros’ do opressor, resistem como se fossem este, a medidas básicas que devem ser tomadas pelo poder revolucionário.
Como seres duais, porém, aceitam também, ainda em função das ‘sobrevivências’ [do passado], o poder que se burocratiza e violentamente os reprime.” (p. 187).
Deve-se, portanto, desconfiar da ambigüidade dos homens oprimidos, pois há um opressor hospedado neles:
“Daí que, enquanto os oprimidos sejam mais o opressor ‘dentro’ deles que eles mesmos, seu medo natural à liberdade pode levá-los à denúncia, não da realidade opressora, mas da liderança revolucionária.” (p. 199).
Nesse sentido, a ambigüidade do oprimido é outro tema interessante sobre o qual venho refletindo muito (Educação e Consciência Política é outro post deste blog):
“A própria situação concreta de opressão, ao dualizar o eu do oprimido, ao fazê-lo ambíguo, emocionalmente instável, temeroso de liberdade, facilita a ação divisória do dominador nas mesmas proporções em que dificulta a ação unificadora indispensável à prática libertadora.” (p. 203).
Nesses momentos de turbulência, tenho convivido com algumas pessoas para as quais a melhor definição seria “ambíguo”.
Freire fala também de uma ‘cultura do silêncio’, que interessa diretamente à dominação (Calar é outro post deste blog).
E, para terminar, outra linda imagem de Paulo Freire:
“Para que os oprimidos se unam entre si, é preciso que cortem o cordão umbilical, de caráter mágico e mítico, através do qual se encontram ligados ao mundo da opressão.” (p. 206).
Não sei mais o que vou encontrar nas minhas fuçadas nas teorias ‘marxistas’, mas o Paulo Freire, sem dúvida, é munição das boas para a ‘luta de classes’ em que estou envolvido, como já denominaram a minha cruzada contra a EaD que está mais interessada em produzir lindas planilhas financeiras do que, efetivamente, em educar.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
(Extraído de http://www.meb.org.br/paulofreireniver)
“Na Pontífica Universidade Católica (PUC) de São Paulo, onde Paulo Freire lecionou por 17 anos no programa de pós-graduação em educação, haverá, no dia 29 de maio, um dia inteiro de palestras e debates sobre o trabalho do educador. Seminários e debates sobre a obra de Freire também acontecerão nos próximos dias em Recife, São Paulo, Mogi das Cruzes (SP), Florianópolis, Rio Grande (RS) e Jequié (BA).
Ao contrário do que muita gente acredita, não é errado dizer que, hoje, comemora-se os 10 anos da morte de Paulo Freire. “Comemorar significa memorar junto, lembrar junto. O que não é a mesma coisa de festejar. Portanto, no dia 19 de setembro de 2007, na data de seu nascimento, nós festejaremos os 86 anos que ele faria”, observa Mário Sérgio Cortella, professor da PUC-SP, que foi chefe de gabinete de Freire na Secretaria de Educação de São Paulo e depois o sucedeu no cargo. Para Cortella, que leciona educação e teologia na PUC, “não dá para pensar na educação no mundo contemporâneo sem levar em conta a obra de Paulo Freire”.”
No 13 Congresso Internacional de Educação a Distância da ABED, realizado em Curitiba, Ana Verena Carvalho e Alfredo Eurico Rodrigues Matta, da UNEB, apresentaram o trabalho: “PAULO FREIRE E EAD: CAMPO DE MÚLTIPLAS RELAÇÕES”, parte de uma pesquisa em andamento. Eu já os convidei para aparecerem por aqui, para trocarem experiências com a gente.
SINTO-ME MUITO ORGULHOSA DE ESTAR ESTUDANDO CITAÇÕES DE PAULO FREIRE NO CURSO DE PSICOLOGIA DAS INSTITUIÇÕES QUE ESTÃO SENDO DESENVOLVIDAS NA USU; PAULO FEIRE É UM ÍCONE NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA, INDISPENSÁVEL, EU DIRIA.
Não concordo com você. A EAD e a educação bancária são duas coisas distintas. Quando meu filho assiste a uma aula presencial e tem que ficar quieto ouvindo seu professor falar e encher o quadro com informações para que meu filho copie e ainda, não permite que ele ou seus colegas possam interromper a aula para expor suas idéias, então ele e seus colegas estão se submetendo a uma educação bancária presencial. O fato de utilizarmos a EAD não faz com que não tenhamos ad-miração pelo tutor, ou por quem quer que seja, pois quando lemos um livro de um determinado autor podemos sentir ad-miração por ele e não termos sequer nenhum contato, mas podemos fazer desse autor a base de todos os nossos trabalhos acadêmicos, quiçá de nosso trabalho.
A EAD democratiza a educação!
Edith, acho que na verdade concordamos, não discordamos. Não são todos os modelos de EaD que são bancários, e eu também luto intensamente pela EaD não bancária. O que o Paulo Freire pode nos ensinar é justamente isso, que temos de fazer EaD dialógica, não bancária.
A educação pode ser dialógca até mesmo quando estamos lendo um livro e nos colocamos em contato com as idéias do autor e temos uma atitude receptiva ,mas crítica.Pressupõe uma interação amorosa entre humanos,embora intermediados pelo livro ,pelo computador ou outro meio.Por outro lado,pode-se estar cara-a-cara e a educação ser “bancária”,desprovida de criatividade e pensamento crítico.
O melhor de tudo é que podemos ser um sujeito ativo na EaD, buscando outros meios que possam complementar ou não a aula que se ministrada e outros pensamentos além de levar para a discursão no fórum, mas quando não se usa esse recurso essa mesma educação, praticada pelo mesma instituição é bancária. Por isso acredito que não depende só da instituição para que ela seja ou não bancária, mas do sujeito, que pode se libertar e tem instrumentos para issso.
José, muito legal o seu comentário. É realmente saudável pensar que a EaD bancária não envolve apenas a instituição, mas também o aluno. Acaba sendo um olhar mais completo para a educação. Valeu muito seu raciocínio.
Oi João,
Em algumas aulas em EAd -Reflexões Filosóficas, nos baseamos principalmente nos argumentos de Freire e em tentativas de que o aluno”saia da caverna”e possa dialogar criticamente com a realidade social , dele, em formação, do aluno e da escola em que está inserido.
E que as aulas sejam mais dialógicas, onde crianças e adolescentes devem por mediação do professor ver brotar o sentido critico da realidade que os envolve: temas como violência esportiva ou da comunidade, foi um dos temas mais abordados!
Em 2 grupos abordamos as Reflexões Filosóficas através de esportes: um dos grupos pesquisou sobre a filosofia oriental ( disciplinadora , e oriunda milenarmente dos mosteiros), porem com o seu maior significante escondido ou desprezado que é o de se estar de mãos vazias para com as mudanças que ocorrem à nossa volta.
Outro grupo abordou a cultura popular por intermédio do Circo e praticas culturais regionais onde os debates envolveram a exclusão e preconceitos…
Em todos os dois as ideias de Freire deveriam ser postas em evidência e como conciliar às atividades propostas, mas que provocassem o diálogo com alunos e a realidade social. Foi uma grata experiência..
O problema está em reproduzir na EaD as mesmas falhas da educação tradicional. Produzir hereronomia ao invés de autonomia.
Se EaD é apenas virtualizar o ensino presencial, então não mudou nada. Critica-se a EaD, mas o problema está na Educação em si. Antes de ser a distancia a educação é que tem que ser repensada. A isso Paulo Freire se referiu.
Usar Paulo Freire para criticar, “detonar” a EaD é anacronismo. É preciso dirigir reflexões para a Educação. O que é educação? Nem sequer comentou isso. O maior problema da EaD talvez esteja em copiar a fórmula da educação tradicional. Assim ela é criticada por um defeito que não criou.
Educação a distância ou distância da educação???
Luis, não sei se entendi tudo o que você disse, mas vamos lá.
Reproduzir na EaD problemas da educação presencial é um problema, apesar de que eu acho que damos importância demais a isso. Eu considero que a educação virtualizada já é diferente, não é fácil fazer uma mera cópia do presencial, os ambientes virtuais já modificam muita coisa. Mas isso é um tema para outra conversa.
Sem dúvida a educação tem que ser repensada, não apenas a EaD. Acho que aqui concordamos.
Quanto a ser anacronismo usar o Paulo Freire para criticar a EaD, essa seria a primeira leitura, mesmo porque ele não estava criticando a EaD. Mas é interessante voltar atrás e achar nas críticas dele à educação (presencial) muitos elementos que nos servem para refletir sobre a EaD que estamos fazendo hoje, e inclusive criticá-la. Seria mesmo anacronismo, mas é justamente a surpresa de que essa anacronismo possa nos servir, que mais me interessa.
O que é educação? Bom, essa pergunta daria um livro, né, talvez uma enciclopédia. Posso tentar fazer o exercício em outro momento, mas tenho lá minhas dúvidas que esse exercício seja útil.
Olá prezados,
Fico feliz em encontrar este post, depois de muitos anos muito atual. Penso igualmente ao meus colegas professores, temos muito para conquistar uma EAD de qualidade. Sou gestora e procuro em pequenos atos mudar a concepção de EAD da minha instituição, pois assim como no presencial já tradicional, replicamos uma educação bancária.
Estou no primeiro ano de doutorado em educação e reformulando meu projeto de pesquisa, vou dar uma maior ênfase agora aos princípios freirianos. Os senhores tem alguma dica de site, repositórios, livros que posso adquirir para me aprofundar mais neste assunto?
Também estou precisando de um co-orientador.
Ficarei no aguardo.
Luciana, em primeiro lugar, é claro, toda a obra do Freire. Além disso, uma pesquisa no Google Acadêmico (ou Periódicos Capes, se tiver acesso completo) retornará artigos e outros textos que fazem esse cruzamento entre as ideias de Paulo Freire e a EaD. Boa sorte!