Perfeição

A metáfora de que a perfeição é um ponto no horizonte que a gente nunca alcança, a gente anda, anda, anda, mas o ponto continua, sempre, à mesma distância – ou até mesmo como a sensação de que estamos chegando perto da água, no Death Valley, que é sempre ilusória, pois não há nunca água e apenas miragens na areia – é uma metáfora pobre, pois não dá conta do fenômeno que procura representar. No fundo, alcançamos a perfeição em alguns momentos de nossa vida, ou pelo menos temos essa sensação, mesmo que já longe dela.

De um lado, em alguns momentos nos sentimos tão completos, tão envolvidos com alguma situação, pessoa ou objeto, tão apaixonados, que chegamos mesmo a dizer que tudo está bem, tudo está perfeito, e se alguém nos perguntasse, nesses momentos, o que é a perfeição, diríamos: é isto aqui, é o que estou sentindo, é onde estou, é o objeto ao qual me sinto fundido. Não há lugar para dúvidas, questionamentos, não conseguimos nos colocar fora da situação sem destruí-la – queremos vivê-la intensa e imensamente. O problema é que essa sensação dificilmente dura por muito tempo. Pequenos detalhes começam a incomodar (uma cor destoante, qualquer tipo de sofrimento, a sobremesa, algum objeto ou corpo estranho que se enfronha não se sabe de onde, ou mesmo que sempre esteve lá, mas que de repente começa a ser notado, etc…), e rapidamente somos lançados novamente para fora do espaço e do tempo da perfeição, como náufragos que precisam, agora, reencontrar a terra firme. E os caminhos muitas vezes têm que ser traçados todos novamente, desde o início, pois tudo o que já foi percorrido não tem mais valor algum – nós já sabemos onde eles nos levarão, e lá já conhecemos tudo o que não é perfeição, o que nos impedirá de fruir da mesma sensação já fruida uma vez, as montanhas de pedras no meio do caminho. Colocamos até mesmo em dúvida, com o tempo, se aquele momento vivido no passado tenha sido realmente perfeito.

De outro lado, muitas vezes não achamos que estejamos em nenhum sentido próximos da perfeição, mas alguma tragédia, uma privação súbita muito intensa, uma perda ou um trauma qualquer nos arrancam com violência de um estado para nos lançar a outros estados, de absoluto sofrimento, insatisfação, incômodo constante etc., quando comparados com o anterior. Nesses casos, passamos a valorizar diferentemente o estado anterior em que nos encontrávamos, e desejaríamos com tanta força retornar ao mesmo, que se alguém nos perguntasse nesses momentos o que é a perfeição, provavelmente diríamos que era aquele estado anterior, que antes não significava nada ou quase nada para nós, mas o qual tivemos o prazer fruir, às vezes inclusive por muito tempo.

Nos dois casos, embora de formas diferentes, podemos dizer que vivemos a perfeição. Mas em ambas as situações há uma tristeza muito grande, que se mistura com a consciência da perfeição. No primeiro caso, aquilo que nos tira do estado de perfeição, que nos desloca, é às vezes um detalhe muito pequeno, minúsculo, mas que se torna um vulto tão grande que é capaz de desequilibrar. Qualquer movimento de retorno ao paraíso esbarra, necessariamente, nesse vulto. No segundo caso, só nos damos conta de que vivemos a perfeição depois, então a sensação é muito triste – pois, associada ao reconhecimento, há também uma necessidade de retorno a um estado que, muitas vezes, torna-se cada vez mais distante.

Assim, de um ponto de vista intelectual, podemos criar uma outra metáfora para representar a perfeição: a perfeição é uma ideia genial, ou mesmo o momento da criação artística. Pois esses momentos, quando são alcançados, oferecem-nos um tempo de fruição muitas vezes curto, e logo alguma coisa exterior a esse estado, exterior à situação de êxtase que vive o poeta ou o pensador, com seu poema ou sua ideia, acaba por deslocá-los sutilmente do campo da perfeição. Algo vem roubá-la, e não há mais retorno – ao menos àquela perfeição – é preciso recomeçar um novo caminho. No segundo caso, o senso de alteridade entra em jogo: muitas vezes só reconhecemos a grandeza de nossa obra, de nosso poema, de uma ideia ou invenção, quando ela passa a ser consumida, utilizada, criticada ou mesmo amada pelo público, pelos outros, que não estavam presentes no momento da criação. Então, nesse caso, o paralelo é claro com uma situação de trauma em pelo menos um sentido: reconhece-se a perfeição apenas depois de já a termos vivido, quando ela já está distante, já se foi. E, se sob certo aspecto há um prazer imenso mesmo em lembrar daqueles momentos de criação, em que a perfeição nos fez companhia, ou mesmo de fruir a obra perfeita, a ideia maravilhosa sendo agora estendida aos outros, também há uma tristeza associada à consciência da falta de consciência da perfeição durante o ato de criação. Afinal, a perfeição, enquanto momento, foi o da criação da obra, momento que é, agora, irrecuperável.

Assim, a metáfora do ponto no horizonte, que nos engana sempre mas nunca chega, mostra-se insuficiente para cobrir esses momentos todos. Porque a perfeição chega, e a algumas pessoas por muitas vezes, e até mesmo por muito tempo. Então poderíamos utilizar uma metáfora que, a princípio, parece muito mais pobre, tão pobre que nem deixa transparecer, à primeira vista, seus aspectos metafóricos: a perfeição é um sonho. Sonho porque realmente sonhamos, apesar de eventos bestas, um barulho qualquer, um despertador, nos tirarem repentinamente do nosso estado de êxtase – e não há mais como retornar ao mesmo estado. Além de que, durante os sonhos, em geral, não temos consciência de que estamos sonhando. Só depois, quando estamos novamente despertos, somos capazes às vezes de nos lembrar de um momento sublime, mas que não pode ser revivido por nossa vontade.

Então há qualquer coisa de maquiavélico e diabólico nessa deusa chamada Perfeição: ou ela nos faz fruí-la, com a consciência posterior de que fomos enganados, ou de sua fuga; ou ela nos faz fruí-la, inconscientemente – e só pode haver perfeição numa consciência de um passado, em que ela não se deixou notar. A perfeição se apresenta, aos seres humanos (e por isso ela não é apenas um ponto no horizonte que nunca chega), mas de uma forma perversa: para vivê-la, ela requisita sempre a falta de consciência. Falta de consciência, de um lado, de que qualquer coisa, por mínima que seja, pode destruí-la; e, de outro lado, falta de consciência dela mesma – ou apenas consciência atrasada. No primeiro caso, vivemos a deusa inconsciente dos seus limites; no segundo, inconsciente de sua própria presença. No primeiro caso, posso estar consciente de sua presença, mas algo se passa imperceptivelmente, que nos rouba a deusa; no segundo caso, estou inconsciente de sua presença, e a consciência acaba por se constituir apenas depois que ela se vai.

A Perfeição, portanto, é uma deusa muito hábil no lidar com seus dois dados, a consciência e o inconsciente. Às vezes mostra-se à consciência, mas exige inconsciência simultaneamente, para que possa ser percebida; em outras, não se mostra à consciência, expõe-se apenas ao nosso inconsciente, mas exige, para ser reconhecida, uma consciência (apenas) posterior.

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5 respostas a Perfeição

  1. Tereza disse:

    Vamos refletir, mas ocorre a duvida se a reflexão escrita é muito pessoal, mas se exposta passa a ser publica e interativa aos que possam ler. De repente alguns, dos que leem, podem, por respeito, acatar a ideia de não interatividade, embora ocorra esta interatividade por intermédio da leitura. Dois pensamentos que ocorreram ao ler, o primeiro da criação artística que envolve dois momentos, o de se lançar em uma ideia e atingir a perfeição de acordo com as possibilidades oferecidas para que a criação ocorra , que é por vezes momentânea , dinâmica, não se repetira, portanto efêmera, e linda por ser efêmera! ou a estática. Sem duvida a perfeição do momento, dinâmico, nos deixam de sobra as sensações, as percepções que nunca podem ser iguais, mas que, em caso de retorno, podem, ser diferentes melhores ou nem tanto. Mas a fruição daquilo que é estático, como uma obra de arte, onde a centelha magica se apoderou daquele criador, envolve momentos embriagadores, como saborear por outros sentidos. uma tela, uma escultura, um filme, ou uma musica, um livro, uma fotografia, repetimos, repetimos e repetimos o ato de se embriagar de prazer em observar o objeto querido, desejado ou famoso ou perfeito mas que não esta ao nosso alcance.

    Do outro lado a compreensão de que a perfeição, se parece com aquela máxima, de que não nos banhamos na mesma aguá de um rio, pois já não são as mesmas! em locais, gastronomia, e pessoas. Aceitar o momento que se esvai, quando nem demos conta de que ele existiu sera sempre frustrante. Aceitar o volátil da nossa humanidade, belíssima em nossas imperfeiçoes!

  2. Adriana Dallacosta disse:

    Amei!!!! Lindo!!!!

  3. Laudiceia disse:

    Muitissimo interessante essa reflexão, a procura para alcansar a perfeição acaba por nos distanciar da sensação do perfeito.Vejo que o perfeito está na busca de fazermos tudo melhor a cada dia e com esse desejo diante da imperfeição de ser humano olharmos com olhos menos criticos os detalhes que supostamente não estão perfeitos.Fazer o melhor hoje já é a maxima da perfeição e o caminho para alcansarmos a felicidade do perfeito.Lindo texto, prof Mattar.

  4. Rosilainy de Andrade Silva disse:

    Como sermos perfeitos se somos naturalmente falhos? Somos naturalmente diferentes. Olhamos aquilo que é relativo com olhos sob diversas influências e perspectivas que formaram culturamente nosso ser ao longo da vida. Perfeição seria ausência de erros, como muitos exigem de si mesmos e do próximo, ou aprendermos que a perfeição é buscarmos hoje sermos melhores que ontem em todos os aspectos da vida? É justamente a percepção da imperfeição que nos motiva a caminharmos ajustando e reparando as arestas. Sempre haverá uma fonte a ser provada…

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