Já escrevi por aqui Meu Medo da EaD, que teve uma repercussão muito grande, mas agora registro um medo ainda maior. Decidi escrever este post para deixar mais clara minha posição exposta no post anterior, I Encontro Nacional de Tutores da EaD, e principalmente porque o assunto não saiu da minha cabeça de ontem para hoje.
Aqui vai uma historinha – qualquer semelhança com a realidade é proposital.
Uma disciplina presencial e semestral numa Instituição de Ensino Superior (IES) tem 6 professores, cada um com 3 turmas, total de 18 turmas. Cada turma tem uma média de 50 alunos e as aulas duram 4 horas por semana.
Com a possibilidade aberta pelo MEC de as IES oferecerem 20% de sua carga horária em Educação a Distância (EaD), essas disciplinas passam a ser oferecidas à distância, com os professores (agora tutores) mantendo seus 50 alunos por turma, realizando diversas atividades de interação durante o semestre e elaborando instrumentos de avaliação adequados à nova situação. Esse era o cenário interessante para onde a coisa caminhava, mas que logo esvaneceu.
Reestruturação: há agora 400 alunos por “turma”, as atividades e provas são de múltipla escolha e o tutor (agora não mais professor) não deve mais realizar atividades de interação (mesmo porque não daria tempo), apenas enviar avisos motivacionais para os alunos, informando que o conteúdo da aula x está disponível, que o prazo para realizar a atividade de múltipla escolha está vencendo etc. Ah, a remuneração não diminuiu (apenas porque a lei impedia), mas o professor passou a receber menos horas-aula por seu trabalho – agora apenas 2, não mais 4. Ou seja, ele recebe agora 2 horas-aula de remuneração por 400 alunos, quando antes recebia 4 horas-aula por 50 alunos.
A IES obviamente não precisa mais dos 6 tutores; 1 deles agora é suficiente para dar conta da nova função “docente”: o tutor oficial da disciplina. Os outros 5 são demitidos.
Numa próxima etapa, nem mais do tutor remanescente a IES precisa – ela pode agora contratar um recém-formado para dar conta da função que é muito mais de monitor do que de tutor ou professor. O último tutor é dispensado. Chega-se ao cúmulo de utilizar um mesmo “tutor” (agora monitor) para diversas disciplinas, muitas das quais ele não domina nem mesmo o conteúdo.
Esta é a história da adoção da EaD nas IES particulares em nosso país. São poucas as exceções e variações.
A questão então é: quem saiu ganhando?
Os professores obviamente não. Os 6 foram dispensados, e o pior é que esse processo ocorreu com mais intensidade nas disciplinas de humanas, que envolvem tradicionalmente alto grau de interação entre professores e alunos. Tenho vários colegas formados em Filosofia, Sociologia, História, Letras, Comunicação etc. que foram demitidos (por causa dessa EaD), não conseguiram se colocar rapidamente (porque o mercado encolheu, já que o processo ocorreu em diversas IES) e acabaram mudando de emprego: estão tentando hoje ganhar a vida como corretores de imóveis, vendedores, cabeleireiros etc., ou continuam simplesmente desempregados. Os professores perderam, mas atordoados com as mudanças geradas pelos progressos da tecnologia, e culpando-se por não conseguirem acompanhar as novidades, além de não terem mais remuneração para o próprio sustento e talvez até pela falta de mobilização da classe, não conseguem se organizar para reagir.
Eu tenho sofrido calado com a hipótese de que a sociedade sentirá os efeitos dessa “EaD” quando novas gerações estiverem formadas nesse modelo, sem a mínima formação em humanas. Inserimos Filosofia e Sociologia de volta nos nossos currículos de Ensino Médio mas tiramos as matérias de humanas do ensino superior. Estamos “formando” uma geração capenga no ensino superior com essa “EaD”.
Os alunos obviamente não ganharam. A justificativa das IES é que eles estão agora sendo preparados mais adequadamente para o mercado de trabalho, onde o e-learning impera, e estão também sendo formados no uso de tecnologia. Mas este modelo de EaD fordista, conteudista e instrucional não é o único modelo de EaD que existe; ao contrário, se é adequado para algum contexto, é para a autoinstrução rápida em algum tema específico, mas muito pouco para a formação em humanas ou em diversas outras áreas do ensino superior. Esses mesmos alunos poderiam estar fazendo EaD com professores, participando de atividades interativas, em turmas menores, sendo desafiados com avaliações adequadas etc. Mas estão fazendo provas de múltipla escolha de filosofia no computador! Os alunos perderam, mas não têm base de comparação para entender o que está ocorrendo em nosso país, sendo martelados com o discurso de que precisam se adequar a um modelo de educação moderno, que são passivos, que querem tudo mastigado. Ficam então mobilizados e não reagem – isso faz parte da estratégia.
Os tutores, por sua vez, tampouco têm base de comparação, pois entraram nisso tudo já com o bonde andando e são pintados (pelos empregadores) como mais modernos que os professores que não aceitam a EaD, que não sabem usar tecnologia etc. Se os tutores de EaD exigirem ser tratados como professores, em todos os sentidos (financeiramente, seguindo a legislação, pedagogicamente etc.), já que eles realizam a função de professores, essa situação não se perpetuará, a justiça do trabalho p.ex. interromperá esse absurdo. Professores e tutores têm que falar em uníssono, como uma só voz, já que são a mesma classe. Nem os professores podem aceitar que os tutores substituam seu trabalho com uma remuneração inferior a 10% do que eles recebem, nem os tutores podem aceitar realizar um trabalho que vale (que já é institucionalizado) mais de 10 vezes, que deles sejam exigidas tarefas incompatíveis com sua formação etc.
O MEC? Bom, o MEC é o pai da criança, porque no fundo adotou o modelo na UAB – Universidade Aberta do Brasil, pagando para um tutor menos de 10% do que o próprio governo paga para um professor, numa universidade estadual ou federal. Se o próprio governo faz isso, chancelado pelo seu Ministério da Educação, o que não farão as instituições de “ensino” particulares? Como o “tutor” é agora uma nova classe profissional, ratificada pelas ações do próprio MEC, todas as conquistas de décadas dos professores, como sindicatos, legislação, direitos trabalhistas etc., são jogados na lata de lixo e não precisam mais ser respeitadas com a manobra. E é sempre bom lembrar que esse modelo da UAB foi adotado pelo MEC justamente com o objetivo de formar professores presenciais para o ensino médio em nosso país, onde seríamos carentes e sensíveis quando fazemos uma previsão para as próximas décadas. É surrealista mesmo, caro leitor, e isso mostra a preocupação do MEC com a formação dos professores – na verdade, o MEC consegue assim números para suas planilhas, que demonstrariam seus resultados no desafio de formação de professores. E também é bom lembrar que a justificativa das IES para as provas de múltipla escolha é que elas preparam os alunos para o ENADE, também obra do MEC.
Quem ganhou com isso, portanto, foram em última instância apenas as IES particulares, que adotaram a EaD como uma estratégia de lucratividade, sem preocupações propriamente pedagógicas. Ganharam alguns coordenadores de EaD, que recebem bônus pelo lucro que conseguiram gerar para os sócios ou acionistas das IES. Planilhas são o produto “pedagógico” que esses coordenadores apresentam para ter direito à sua remuneração adicional, baseada na lucratividade gerada.
Alguns meses depois de ter escrito este post li essa passagem na CFESS Manifesta especial Educação não é fast-food, que cai como uma luva aqui (depois da inserção, continua o post original):
Trata-se de denunciar quem se beneficia com a educação à distância: de um lado os “tubarões” do ensino, que ficam cada vez mais ricos e que têm um único objetivo – vender uma mercadoria. E de outro lado, o governo, que se desobriga da execução da política pública de educação e acena com a mão do mercado o EaD como única saída. Desse modo, o ensino de graduação à distância assume a condição de um novo fetiche social, pois, em nível da aparência do fenômeno, apresenta-se como democratização do acesso, o que esconde sua essência mercantil.
Não é à toa que muita gente não gosta da EaD. Uma EaD envolta em tantas manobras, em tanto desrespeito a alunos e professores, e à própria educação, não pode agradar a quem encara a educação com seriedade. Foi realmente um golpe de mestre, mas ainda temos pessoas sérias que fazem educação no país, que reagem, resistem e criticam o que está acontecendo.
A discussão sobre EaD e tutoria no Brasil não pode simplesmente passar uma borracha nessas questões, ignorando-as como se elas não existissem ou fossem coisa do passado. Elas precisam ser discutidas por professores, tutores, alunos etc., pois nem o MEC nem as IES acenam com qualquer intenção de mudança na situação atual, já que ela é lucrativa e confortável para os dois lados.
Então você pega a programação de palestrantes de um evento que se intitula I Encontro Nacional de Tutores da EaD, organizado por uma entidade que se intitula Associação Nacional dos Tutores da Educação a Distância, e vê que dela praticamente só participam Coordenadores e Diretores de IES e outras instituições, além de convidados do MEC. Não há um só professor entre os palestrantes e só há um tutor – o presidente da entidade! Quem patrocina o evento? O COC. Cadê a voz dos tutores e dos professores? Ficará restrita a mesas-redondas. Cadê a voz dos professores que são críticos do modelo? Não será ouvida.
O problema não é apenas que o modelo “está mais voltado para a entrega de material ‘físico’, deixando de lado o material ‘humano’ que está à frente deste processo educacional” (como diz o Luis Gomes, Presidente da Anated, no seu comentário ao meu post anterior), o problema não é só de valorização de conteúdo e desvalorização de material humano: é ainda anterior a isso, é trabalhista, de exploração, ideológico. Uma associação e um evento de tutores que não entende isso (ou finge que não entende), que se estrutura dando voz a quem perpetua esse modelo perverso de EaD, não tem representatividade para a classe. Nenhum tutor nem nenhum professor pode considerar-se representado pela associação. Ela não está a serviço dos tutores e professores, mas sim daqueles que desejam perpetuar até onde der essa grande farsa que os está explorando ao limite, gerando assim lucros e dividendos.





